quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

REI DE TUDO

A morte de Eusébio da Silva Ferreira originou duas polémicas que muito têm ocupado a intelligentia lusa. Primeiro, se os restos mortais da glória do futebol nacional deverão ser tresladados para o panteão. Segundo, se os restos de rigor do ex-primeiro ministro José Sócrates garantem alguma verdade no seu discurso. Sobre ambos os casos, lembrei-me de uma citação de Heródoto feita por Paul Feyerabend no livro Adeus à Razão (Edições 70, Janeiro de 1991, p. 56):

Quando Dario era rei da Pérsia, convocou os gregos que sucedia estarem presentes na sua corte e perguntou-lhes quanto queriam para comerem os cadáveres dos seus pais. Responderam-lhe que por nenhum dinheiro do mundo o fariam. Mais tarde, na presença dos gregos, e com o auxílio de um intérprete, para que pudessem entender o que era dito, perguntou a uns indianos, da tribo chamada Callatiae, que na verdade comem os cadáveres dos seus pais, quanto queriam para o incinerar. Soltaram um grito de horror e proibiram-no de mencionar uma coisa tão horrível. Por aqui se vê o que o costume pode fazer e, na sua opinião, Píndaro estava certo quando lhe chamou «rei de tudo».


Referia-se Píndaro ao costume e não a Eusébio, esclareça-se. Sendo originalmente o templo que gregos e romanos consagravam ao conjunto dos seus deuses, com o tempo, e a morte de Deus devidamente anunciada por Nietzsche (seria de uma ironia impecável se o colocassem num qualquer panteão germânico), os panteões transformaram-se em mausoléus onde as pátrias conservam os seus heróis. Olhando para o nosso, encontraremos por lá, acredite quem queira, D. Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, Almeida Garrett, Amália Rodrigues, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro, Humberto Delgado, João de Deus, Manuel de Arriaga, Óscar Carmona, Sidónio Pais e Teófilo Braga. Confesso certa dificuldade em determinar os feitos que garantem a excepcionalidade destas personalidades, mas acredito que um inquérito de rua revelaria uma desastrosa memória dos portugueses perante os seus heróis.
Desmemória ou conhecimento débil, tanto faz. Em suma, resulta tudo isto numa incultura genética que o passado releva, o presente evidencia e o futuro há-de consagrar. Juntar Eusébio àqueles pode parecer indiferente, mas não é. Assim como não é a morte lenta do filósofo da Covilhã há muito decretada por grande parte da comunicação social portuguesa e seus empenhados fazedores de opinião. A cicuta de Sócrates, o da Covilhã, é, ironia das ironias, a cicuta do seu povo: falta de memória. Ou, se preferirem, uma memória selectiva e fantasiosa. Pode o costume ser rei de tudo, mas não o é em Portugal. Nesta República governa a desmemória, a mesma que nos arrastará ad æternum numa confrangedora ausência de costumes que exijam, pelo menos, algum critério na hora da morte e, por consequência, na hora de escolhermos os nossos eternos representantes. Talvez preferível fosse mesmo comê-los.

5 comentários:

Pedro Góis Nogueira disse...

Só aqui perto de onde vivo, no Cemitério dos Prazeres - que não é para todos nem para residentes - estão Jorge de Sena, José Cardoso Pires, Carlos Paredes, Cesário Verde, Mário Cesarini, António Tabucchi(mais italiano-português mas tenho de o citar, etc e etc. E há outros assim, mais importantes que panteões... Mais até fora de Portugal. Do que imagino disto agora é que se vai o Eusébio, previsivelmente daqui a algumas décadas (esperando que não seja antes) terão de ir José Mourinho e Cristiano Ronaldo, com currículos, conquistas e feitos incomensuravelmente superiores. Ou então qual será o critério para então não irem? O Eusébio ter sido único? É isso? Ou o panteão é mesmo uma piada ou então brincam com o fogo, e depois empurram com a barriga.

hmbf disse...

Pois é, Pedro. A pequenez de um país dá nisto, os homens começam a rastejar o pensamento. Enfim...

rapaz disse...

Lá está! Para quê saber quem está no Panteão? Antes ter algo no coração!

Saber quem está no Panteão também faz parte de ser culto? Então põe aí mais um menos para mim. Arriscava Camões e ninguém mais. Ah! Amália. Amália merece um Panteão só para ela.

Como de resto, conheço muita gente letrada, gente que recita Shakespeare de cor e no entanto são uns grandes crápulas. A ignorância não é uma virtude, como não é um defeito, tudo depende do ser. Desenvolve-se o ser com o conhecimento? Talvez, mas que tipo de conhecimento? O conhecimento não é uma pontuação que se vá adquirindo, está relacionado com muitos outros factores, como a sensibilidade.

Pode saber-se a tabuada de cor, e não se saber fazer contas de cabeça, é uma cantiga que se aprendeu, se decorou, sem sentimento.

O problema não está na palha, está na língua.

hmbf disse...

Sem querer discordar, devo comentar isto:

«conheço muita gente letrada, gente que recita Shakespeare de cor e no entanto são uns grandes crápulas»

não duvido

mas eu conheço ainda mais gente que é crápula sem nunca ter lido Shakespeare nem sequer saber da sua existência

um crápula é um crápula, claro. e nem ponho em causa que o próprio S. tenha sido um deles

rapaz disse...

Assim comentado, concordo.
Não sei o que digo, são convulsões. grato pela atenção.
Sabes quantas mulheres e filhos teve Agostinho da Silva? Sabes de alguma delas ou algum deles? Sabes porque vivia só em Lisboa quando morreu?
ah! a varanda repleta de plantas!
abraço, rapaz