Acontecimentos como os de Paris nas últimas horas
arrastam, inevitavelmente, muitos comentários e opiniões. Isso é positivo,
mesmo quando se trata de manifestações estúpidas da controversa liberdade de expressão.
Disse ali que não entendo o que se passou como um acto terrorista contra a
liberdade de expressão. Para mim, foi um acto de guerra contra a liberdade. O
mesmo sucedeu aquando dos atentados em Nova Iorque ou em Atocha, onde, se bem
me lembro, não estavam cartunistas e desenhar caricaturas de Maomé. Não vale a
pena alimentar ilusões quanto a isto quando nos chegam diariamente notícias,
acompanhadas de documentação inquestionável, sobre os métodos hediondos e as
acções indefensáveis dos assassinos a cargo do Estado Islâmico. Travam-se agora
discussões sobre a liberdade de expressão, partindo de dúvidas sobre os limites
do humor e da sátira como se devesse haver limites para o humor e para a
sátira. Não há. Havendo, são impossíveis de determinar porque inerentes à
consciência individual. Depois há as virgens do certinho e direitinho que vêm
com a conversa estafada de que insulto não é humor. Deviam perguntar-se, antes
de mais, sobre a natureza do insulto. Talvez percebessem rapidamente estar a
mesma dependente da sensibilidade de cada um. E do tempo em que vive. E da sua situação. Concordando ou discordando de
conteúdos, importa deixar muito claro que os criminosos não estavam a trabalhar
dentro da redacção de um jornal. Há pessoas que não querem perceber isto, assim
como não querem perceber que o chamado ISIS (Islamic State in Iraq and Syria) é
uma organização terrorista com desígnios que escapam tanto ao povo ocidental
como à imensa maioria dos maometanos espalhados pelo mundo. O fundamentalismo não
reconhece fronteiras, infiltra-se em vastos territórios como água nas frestas,
e pouco tem que ver com experiências do sagrado e sentimentos religiosos. Isto não cabe no relativismo cultural. Normalmente
estamos a falar de interesses económicos obscuros, organizações internacionais
com ligações inimagináveis, sobre as quais não vale a pena fazer filmes e engendrar teorias conspirativas. Todo esse obscurantismo jamais será aclarado se as
forças de poder não estiverem interessadas na aclaração. Eis que chegamos aos
senhores de indústrias poderosíssimas como as do armamento, do tráfico de
droga, do petróleo. Quem mistura estes acontecimentos com lutas civilizacionais
ou simplesmente religiosas é ingénuo, mais ainda se vier com a repetida
patranha da boa vida nas democracias ocidentais e da má vida nos estados ditos
islâmicos. Basta abrir os olhos para se constatar que são ínfimos os lugares do
mundo onde se vive bem. E isso nada tem que ver com religião. Por exemplo, será
que na Coreia do Norte se vive bem? Preferias viver na Coreia do Norte ou na
Arábia Saudita? Eu preferia viver em Portugal, mas não estou completamente convencido
de que em Portugal se viva bem. Diz que no Catar também não se vive mal. A
discussão levar-nos-ia demasiado longe, e daqui a pouco teríamos dezenas de temas
misturados numa confusão cacofónica onde ninguém se entenderia e de onde nada
de relevante se aproveitaria. Normalmente é assim quando um acontecimento nos
atinge a todos de uma forma tão transversal. Mas a propósito de liberdade de
expressão, gostava de invocar um livro intitulado The Museum of Scandals – Art That
Shocked The World, de Éléa Baucheron e Diane Routex. O título diz tudo. A
primeira parte do livro chama-se justamente Sacrilege e destaca a relação problemática entre religião e arte. Hei-de regressar a este livro com
outro pormenor. Por ora, e porque o tema do momento a isso inspira, quero aqui
recordar os célebres caprichos de Goya:
E as caricaturas de Honoré Daumier, cujo tom insultuoso
para a época o levaram à censura e à prisão:
Ou o Hitler religioso de Maurizio Cattelan, condenado por
várias organizações judaicas:
Enfim, para quem, como eu, acredita que uma das funções
da arte é quebrar barreiras, sendo certo que isso nunca se faz sem provocar
escândalo e, por consequência, mexer com a consciência das pessoas, custa ouvir
o tal discurso de uma liberdade de expressão que seja liberdadezinha. É a
liberdade dos vídeos de gatinhos e de cãezinhos amorosos, uma liberdade que, em
boa verdade, não expressa nem exprime nada. Dito isto, devo dizer que sempre me
insultará muito mais ouvir dizer que com as políticas do actual governo os
portugueses podem não estar melhor, mas o país está, do que qualquer
caricatura, do que qualquer obra de arte, do que qualquer expressão que não
ponha em causa direitos fundamentais. O de viver livremente é um
deles.
5 comentários:
Belo texto Henrique, obrigada. saúde e bjs para toda a tribo
Obrigado eu pelo comentário, embora entretanto tudo isto já esteja desactualizado. A conversa agora é entre humoristas: eu sou mais Charlie do que tu, a minha pilinha é maior do que a tua. E depois andam esses tontos a fazer piadas com o Gustavo Santos, um palerma fácil de caricaturar. O Boaventura de Sousa Santos disse ontem na RTP Informação coisas muito parecidas com as proferidas pelo Gustavo. Alguém lhe caiu em cima? Santos vs Santos, ainda hão-de ser todos beatificados. E os "niltons" deste pobre canto à beira mar atracado também. Saúde,
Antes de ontem gostei de ouvir o Pacheco Pereira a dizer que o atentado contra o Charlie Hebbo foi contra a liberdade. E que aqui em Portugal num congresso universitário onde ele ia falar sobre as caricaturas de Maomé dinamarquesas, não o deixaram mostrar as imagens que ia analisar, porque poderiam ofender a sensibilidade de alunos muçulmanos. Existe muita censura neste quintal.
olha, em Portugal a liberdade de expressão acaba onde a empresa começa. entras para uma empresa e lá se vai a tua liberdade de expressão. não vejo por aí muita indignação contra a censura no contexto do trabalho. haverá censuras mais censuras do que outras censuras?
Bem lembrado no FB.
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