sexta-feira, 26 de junho de 2015

LITERATURA EXPLICATIVA

Quiseram os deuses, ou os astros, ou porventura os homens, esses de quem Almada dizia serem apenas desprovidos de qualidades, que vivêssemos num país repleto de génios, embora emigrados. Não nos faltam heróis, mas a História prova que foram mais as perdas do que as conquistas. Temos os melhores futebolistas do mundo, ainda que nunca tenhamos vencido nada internacionalmente. Somos um país falido de cofres cheios, teorias não escasseiam, soluções rareiam. Somos também, e muito orgulhosamente, um país de poetas — que poucos lêem. E quem se atreverá a ler os leitores de poetas? Ainda para mais em tempos originais, tempos que nos oferecem sábios a cada esquina, capazes de teorias para tudo, capazes de um conhecimento inimaginável, sem nunca terem estudado nada, sem nunca terem mergulhado na dúvida, sem nunca terem sequer vacilado perante aqueles a quem oferecem maiorias absolutas sucessivas por neles observarem, muito provavelmente, o eco das suas próprias certezas: raramente se enganam, nunca têm dúvidas. Viva. Ironia das ironias, ninguém nos tem definido melhor do que os poetas. E não me refiro aos Lusíadas, nem à Mensagem. Refiro-me, por exemplo, a Ruy Belo, que numa entrevista que trago sempre de boa memória dizia: «É realmente uma desgraça ter nascido em Portugal. Sentimo-lo quando nos nasce um filho. Parte para a vida em desvantagem». Exemplo? «Lia Jorge Amado… Não admiro Jorge Amado. Da última vez que ele esteve em Lisboa tive a fraqueza de o conhecer e sabe o que ele me desejou? (…) Êxito, calcule. Não sabe como me ofendeu. Compreendi. Eu sei que, antes do lançamento de «Dona Flor e seus dois maridos», Jorge Amado já tinha assegurados mil e quinhentos contos… Êxito, em vida, em Portugal? Se toda a gente nos lesse, seriam nove milhões. Ora treze milhões nasciam há uns tempos por ano na China. Qualquer dia — utilizo números de D. Helder Câmara — serão 1500 milhões. «Crescei e multiplicai-vos». Os Estados Unidos consentirão?» Limpo e certeiro, mais estatística, menos estatística, ninguém se atreverá a negar a evidência. O diagnóstico do poeta mantém-se actual. A mesma entrevista aparece citada, a páginas tantas, no volume Literatura Explicativa — ensaios sobre Ruy Belo (Assírio & Alvim, Junho de 2015), organizado por Manaíra Aires Athayde, onde se coligem vinte e dois ensaios, de leitores tão distintos como Eduardo Lourenço e Vasco Graça Moura, Gastão Cruz e Rosa Maria Martelo, Paula Morão e J. B. Martinho… São textos essencialmente focados em aspectos inesgotáveis da obra, já que acerca do autor tudo o que havia para dizer foi dito em tempos por Joaquim Manuel Magalhães: «Tudo aquilo que não aconteceu a Ruy Belo mostra os mecanismos da merda em que nos fazem chafurdar» (Cf. Os Dois Crepúsculos). Os leitores de Ruy Belo encontrarão neste volume óptimas pistas para um aprofundamento do que a Obra Poética oferece, os não leitores poderão vislumbrar focos de interesse diversos mas complementares. Organizados em seis partes, estes ensaios reflectem, por exemplo, a relação da poesia com os lugares (destaco os textos de Ida Alves e Fernando J. B. Martinho, por neles ser problematizada com especial interesse a relação deste poeta com o mar e com as terras de Espanha), o trabalho de montagem que Belo dedicava incansavelmente aos seus livros (excelente, o ensaio de Vasco Graça Moura sobre A Margem da Alegria), a presença de temáticas clássicas e universais, como seja a temática do amor, numa poesia onde a morte é uma constante (Luís Mourão propõe um exercício heterodoxo cujo título fala por si: Do formato mulher em Ruy Belo), a dimensão de tradutor e ensaísta, contemplada por Joaquim Manuel Magalhães na organização do volume 3 da Obra Poética de Ruy Belo (Editorial presença, 1984), algumas leituras comparadas, reflexões sobre a modernidade, contrastes no interior da Obra, a recepção crítica, um belo exercício de close reading, levado a cabo por Gustavo Rubim, para o poema

A MISSÃO DAS FOLHAS

Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento


Não resisto à citação: «O poema, note-se, não define as folhas, não diz de que folhas ou tipo de folhas está a falar: na sua fala extremamente elíptica, qualquer folha, todas as folhas, se calhar até as folhas dos livros, têm a mesma missão: «definir o vento». Como se o poema inventasse aquilo que sabe, inventasse neste caso a missão que atribui às folhas ou inventasse para as folhas uma missão que antes do poema não se podia dizer que elas (já) tivessem. Está aí ao mesmo tempo a força e a fragilidade deste poema, quem sabe até se não será a força e a fragilidade de toda a poesia, de uma «arte tão pouco significativa no nosso tempo como a poesia», para repetir a frase bem conhecida do próprio Ruy Belo» (p. 254). Na última parte deste livro, que fecha com um inventário exaustivo da Fortuna Crítica de Ruy Belo (curiosa desmesura, que faz de Ruy Belo, sem dúvida, um poeta do séc. XXI), encontramos três ensaios dedicados à mais apontada, mas sempre conflituosa, problemática, complexa trindade beliana: deus, morte e arte/poesia. Ainda que não existam grandes revelações, nem entusiasmos desmesurados que ergam o ensaio acima da sobriedade académica, vale a pena passar os olhos por este volume. Mais que não seja para voltar a Ruy Belo, regresso que se quer constante como o das estações. Até que o mar nos leve a todos para o fundo do silêncio. 

4 comentários:

Cuca, a Pirata disse...

Ando precisamente a ler o volume 3 da obra poética.
:)

hmbf disse...

É uma pirata encantadora, a menina Cuca. :-)

Luis Eme disse...

Fica sempre qualquer coisa, quando lemos os leitores de poetas. :)

hmbf disse...

Agradecido. :-)