As pessoas que acusam a Europa de não se comover tanto com
os atentados fora da Europa como se comove com os atentados na sua própria casa
partem de princípios estranhos à natureza humana. O grau de comoção é
proporcional à proximidade. É Natural que um português se sinta mais próximo de
Paris do que de Nairobi, assim como muitos de nós se sentirão mais próximos de
Maputo, por razões históricas óbvias, do que de Oslo. Eu sinto mais a morte de
um familiar do que de um estranho. Por mais que o exijamos, a política também
não escapa a esta lógica que separa os nossos dos outros. Condenável é quando
ensaiamos um julgamento dos outros a partir de premissas absurdas. Por exemplo,
as pessoas que aquando dos atentados ao Charlie Hebdo diziam que aqueles
humoristas estavam a pedi-las e as que agora questionam, cinicamente, a previsibilidade
dos atentados em Paris. Estavam à espera de quê? — perguntam, aludindo ao
acolhimento de refugiados como uma via aberta para a entrada de terroristas na
Europa. A premissa está errada, desde logo, porque mesmo reconhecendo que entre
os refugiados existam terroristas infiltrados, isso não justifica que
condenemos à morte milhares de vidas que fogem, justamente, do terror que nós
voltámos a sentir agora. Fogem em cenários que nos são, felizmente,
inimagináveis.
Quem tenha estômago para ver o “marketing da selvajaria”
propagado pelo ISIS (corpos esventrados, cabeças espalhadas pelas ruas das
cidades, massacres organizados sob a forma de ritual, pessoas arremessadas de
edifícios altos, cabeças espetadas nas pontas de lanças…), pode ficar com uma
ideia, uma mera ideia, do Inferno que os refugiados conseguiram deixar para
trás. Os poucos que conseguiram, já que, na realidade, são muito poucos se os compararmos
com os milhões que não conseguem fugir e têm de se sujeitar àquela barbaridade.
Da mesma forma, quem associa o ISIS ao islamismo pretendendo lançar sobre o
Islão toda uma campanha difamatória omite o óbvio: isto pouco tem que ver com
religião. Sendo eu ateu, preferindo o pensamento à oração, julgo que num mundo
sem Deus não estaríamos livres de nos acontecer algo semelhante. Porquê? Porque
a questão religiosa, neste caso, serve apenas para recrutamento, é o argumento
falacioso do paraíso na eternidade junto de quem se sente injustiçado na terra,
é o argumento de uma putativa causa que vai ao encontro da raiva sentida pelos
humilhados e pelos ofendidos. É um argumento que facilmente seria substituído
pelo desejo de fama e poder que aliciou tantos dos maiores criminosos no mundo
secularizado.
Estamos, em boa verdade, a falar de um tenebroso mundo do crime
com vista ao controlo e tráfico de oleodutos e gasodutos. O perfil de Abu Musab
al-Zarqawi, fundador do que hoje conhecemos como Estado Islâmico, é o de um brutamontes,
arruaceiro, que bebia muito, tinha o corpo coberto de tatuagens, que se
dedicava a traficar droga e a roubar lojas (tudo práticas proibidas pelo Islão).
É a história típica do criminoso em ascensão que vislumbra na jihad uma
oportunidade para formar um exército a seu serviço. Quando ouço dizer, e
ouço-o, que estes tipos que tanto mal nos querem foram por nós alimentados no
passado (e no presente) não posso deixar de concordar, embora com reservas
sobre o tipo de alimentação em causa. É que os próprios reconhecem que a invasão
do Iraque foi uma dádiva para o crescimento do movimento: «Abu Musab al-Suri,
um dos estrategas mais proeminentes da jihad, alegava que a guerra no Iraque
salvara, quase sozinha, o movimento». Alimentou o ódio e o fundamentalismo
contra o ocidente, ao mesmo tempo que os países ocidentais se entretinham com
baralhos de cartas onde estampavam o rosto dos seus supostos inimigos e
continuavam a vender armas e a estabelecer protocolos e a fazer negócio e a
apertar a mão a nações patrocinadoras do Daesh ou Daash ou EI ou ISI ou ISIS.
Portanto, em vez de perdermos tempo com questões que pouco ou nada servirão para
travar este problema talvez fosse mais útil, enquanto cidadãos europeus, exigir
aos nossos governos que parem de alimentar o monstro. Como? Perguntem a quem
vende armas e a quem compra petróleo.
4 comentários:
Texto muito bom. O que acontece aqui no Brasil, pasme, tem algo de mais perverso :: muitas pessoas se sensibilizam mais com o que acontece na Europa do que com o que acontece na sua cidade ou no estado vizinho.... Sei lá, tem mais glamour talvez...
E perguntem a quem invadiu o iraque a pretexto duma falácia do tamanho da estupidez do Bush a quem durão barroso fez de porteiro e empregado de mesa com todo o respeito pelos empregados de mesa e porteiros deste país. A História não se apaga...
Abç
Subscrevo. Saúde e bjs para toda a tribo
A vida numa goa, força aí.
RFF, pois não. Mas os cães ladram à passagem da caravana. Os criminosos andam à solta.
MJLF, abraço e saúde.
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