De vez em quando acontece, entre génios de todas as artes,
na intrincada floresta de entidades hiperbólicas e semideuses de oníricos
devaneios, surge um lugar daqueles com mundo e gente como a de todos os nossos
dias, gente vulgar, comum, gente onde pressentimos sangue e no sangue que
pressentimos vislumbramos o que possa ser questionado. Gente Séria (Planeta,
Fevereiro de 2018), romance de estreia de Hugo Mezena (n. 1983), transporta-nos
para uma aldeia no norte do país. Podia ser no sul, a este ou a oeste. Benomilde
é um lugar como muitos outros, facilmente comparável no seu ambiente católico,
conservador, claustrofóbico, de certo ponto de vista até miserável, comparável a inúmeros
outros lugares espalhados pelo território nacional. O narrador envia-nos para a
sua infância e adolescência, para um tempo em que teria 10 anos no ano da graça
de 1987, com Portugal acabado de entrar na CEE, diz-se que 20, 30, 40 anos
atrasado, em todos os termos possíveis e imaginários, relativamente aos outros
países da mesma comunidade.
Quem tenha vivido em ambiente rural naqueles tempos
facilmente se identificará com inúmeras situações, com os gestos abrutalhados
das gentes, com as desigualdades sociais, com a mentalidade tacanha e comezinha
das personagens, com a estreiteza numa comunidade onde todos observam todos
para evitarem ver-se a si mesmos, onde todos se ocupam a julgar os
outros para não terem de viver com o peso de se julgarem a si próprios. O tempo
vai passando, mas é como se não passasse. Na voz do narrador tudo patina sem
sair do mesmo lugar. Miguelito, o menino, começa a registar os pecados numa
folha. Foi Lininha quem lhe o sugeriu na catequese. E o romance desenvolve-se
em capítulos curtos como quem anota num caderno o que vai vendo, recordando,
pensando.
Num primeiro plano, temos a família de Miguelito.
Sobretudo o avô Jorge, figura austera, com quem Miguel aprende a escarrar como
um homem. O gesto define a personagem. Mezena é muito perspicaz neste tipo de
caracterização, as personagens são traçadas pelos gestos, pelas acções, muito
mais pelos silêncios entre elas do que por monólogos profundos acerca de temas
complexos: «O silêncio era, portanto, uma das maneiras que o avô tinha de nos
fazer compreender o que pensava acerca de determinado assunto. / A outra eram
os gritos»» (p. 105). Não são frases inocentes, nelas se elucida um tipo de
relação familiar. O distanciamento do olhar permite a descrição desinteressada,
como quem prefere entender e arrumar a sentenciar. O avô Jorge: «Era capaz de
fazer contas de cabeça, mas não sabia escrever o próprio nome» (p. 25). É o
atraso social de um país o que aqui se manifesta, uma geração de gente analfabeta
a fazer pela sobrevivência, gente tomada por estúpida sem o ser, gente de rédea
curta nas oportunidades.
Nascer num meio destes, já dizia o poeta, é nascer em
desvantagem. Só não o sabe quem nunca o viveu. Entre confissões, os medos
mitológicos a virem à tona, Deus sobre todos como um machado sobre a cabeça.
Pelo meio, padres que pecam, que resvalam para o pecado, a professora primária
que arreia em nome do futuro, histórias que se contam em surdina, crimes cometidos
pela calada, pais que dão biberões de vinho aos filhos para fazerem deles
homens, males insignificantes que geram veredictos crudelíssimos. Há do início ao fim uma
crueldade latente em Gente Séria, uma crueldade que apenas
se tornará evidente numa expiação social reveladora do mal ali germinado. A
certa altura sentimo-nos solidários com o tio que coloca um anúncio no jornal a dar
conta de que morreu. Desconfiamos do desespero e perdoamos-lhe a
mentira, percebemos o quão importante para ele era ver-se livre daquela gente,
daquele mal.
Acerca das lógicas do bem e do mal, podemos
interrogar-nos como Kant fez na Crítica da Razão Prática. Mas aqui a dúvida não
é sobre a natureza das boas acções, aqui a dúvida é-nos colocada pela mente de
uma criança de 10 anos que em tudo vê maldade. Chega a pensar que nasceu na
altura errada. Afinal, o mundo estava para acabar. O séc. XXI preparava-se para
extinguir os homens da Terra. Onde andam a compaixão, a benevolência, a
misericórdia? Os comportamentos das pessoas nos funerais também são reveladores
de uma hipocrisia sem solução aparente, a não ser zarpar dali. A vida em
Benomilde é uma espécie de morte, não chega a ter os traços grotescos dos
porcos e maus de Ettore Scola, mas a fealdade tem a mesma origem. Ela pode ser
sintetizada na descrição de uma habitação: ratos no sótão, o telhado a deixar
passar água, chão comido pelo bicho, canalização com fugas. Nesta casa mora gente,
gente a sério.
1 comentário:
Obrigada pela opinião. O livro desde que foi publicado chamou-me a atenção, no entanto li críticas desencorajadoras.
Enviar um comentário