Mesmo que não quisésseis saber, por esta altura é inevitável
que pelo menos já vos seja familiar o nome da deputada Joacine Katar Moreira.
Não é por simpatia ideológica que a ela me refiro, mas como ficar
indiferente à forma como introduziu o amor no discurso político? «Não se pode
falar de salário mínimo nacional sem amor», disse em pleno parlamento, para
espanto de uns, indiferença de outros e gozo de tantos. Quase ao mesmo tempo
que o dizia, assistíamos nós, minhas filhas, a uma peça acerca da
incompatibilidade entre política e amor. Tereis reparado na coincidência?
Em “Reinar Depois de Morrer”, de Luis
Vélez de Guevara (1579-1644), impõe-se aquilo a que chamam razão de estado. E o
que poderá ser isso senão disparar sobre os olhos de quem se manifesta, calar o estupro
e a execução de uma mimo, lançar gás lacrimogénio sobre os mortos? É o tempo em
que vivemos, este tempo insuportável de desamor e crueldade, este tempo de razão de estado desprovido de amor.
Sobre o Príncipe
Pedro e Inês de Castro podemos, em resumo, supor que o rei fez como
Pilatos. Camões o sublinhou no terceiro canto da epopeia nacional, atribuindo
ao povo o gesto inclemente da condenação de um amor que não convinha ao destino
pátrio. Retomando imagens e conceitos, pelo menos Bocage foi capaz de apontar
os “pomposos cortesãos” e o “monstro da política”. Nem sempre os poetas resistem
às circunstâncias, preferindo a maioria evitar as ruas para com elas não
assumir o compromisso de um amor transbordante, mais largo e comprido do que
a cama onde o sonho os distrai da realidade.
Vede como Torga comparou
nossos amantes a personagens literárias, transformando Pedro num Romeu de
Portugal e Inês numa Julieta castelhana. E se Natália não fugiu à visceralidade
dos factos, sublinhando a ira do príncipe e referindo-se ao “ritual macabro da
coroação”, verdade é também que tanto no tom como na forma manteve o caso em
estâncias mitológicas. Do poder político, queridas filhas, podeis esperar pouco
mais do que cobrança de impostos, sendo por isso mesmo tanto mais urgente que
vos empenheis em exigir-lhe serviços.
Se Herberto preferiu olhar para o caso
pela perspectiva do algoz, não foi por haver inocência na sua intenção. Muitos
anos passados sobre as naves de Alcobaça, outros algozes defenderam-se dos
crimes perpetrados sublinhando sua condição de funcionários. Ficai sabendo que, em
matéria de razão de Estado, para o mal todos os funcionários são poucos,
enquanto para o bem quase sempre escasseiam recursos. Imaginai, pois, esse
ideal de feminilidade como o imaginou Ruy Belo, ou considerai a hipótese remota
de uma paixão assolapada nestes tempos em que impossível parece ser o amor tout
court. Procurai seguir-lhe o rastro, tal como o sugere nosso amigo Nuno
Dempster, nas ruas de uma actualidade onde tudo parece desprovido de
paixão. Talvez assim vos seja possível chegar onde o amor foi inventado.
Nisto
vos ofereço, então, “A Invenção do Amor e Outros Poemas”, de Daniel Filipe
(1925-1964), poeta nascido num arquipélago para onde foram enviados tantos
amantes depois de haverem sido perseguidos e torturados. Esse Estado que
persegue quem ama, como um algoz ao serviço do poder, ressurgido e reinventado no poema com
o fundo demencial desta tirania desde há muito instalada na cabeça dos homens,
é a esse Estado que nos devemos opor, pois nenhuma incompatibilidade pode haver
entre amar e querer o bem do outro. Esvaziada de amor, que será a
política senão mero jogo de poder? Sangrada de paixão, que será a
política senão intriga egoísta contra a dança e a alegria de estarmos vivos?
Que o “grito de esperança inconsequente” de que fala o poema possa ter
consequências nos vossos corações, para que o mito seja real pelo menos no modo
que vieres a adoptar quando vossos olhos se cruzarem com quem vos olha. Tem
razão a deputada, sim, ainda que a razão de Estado pretenda demonstrar o
contrário, ao mesmo tempo que cospe na mão de quem pede esmola e se apropria da
caixa onde o pedinte amealha donativos. Não, minhas filhas, não permitis que
vos façam confundir amor com misericórdia. O amor é solidário, sem
solidariedade a política apodrece, o amor é o remédio que protege a política da
absoluta podridão.
2 comentários:
Toda crítica que pretende despertar a consciência para compaixão coletiva também é amorosa. O amor é nobre e responsável. Em tempos de crise se expressa com vigor. Ou então, seríamos a voz da prosmicuidade . Abraços para você e suas filhas.
Tenho essa edição, precisamente! Um livro que foi determinante, na minha adolescência, para o meu amor pela poesia.
Que as suas filhas o leiam com amor!
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