Duas histórias que já terei contado, mas
recupero agora. “O Livro do Meio: romance epistolar” (2006), escrito a meias
entre Maria Velho da Costa e Armando Silva Carvalho, foi dos primeiros livros,
senão o primeiro, que vendi durante o meu percurso de aprendiz de livreiro.
Onze anos passados na profissão, não me recordo de vender outros livros de
Maria Velho da Costa. À excepção de um. Lá iremos.
Entretanto, a lembrança do
homem das calças de ganga deslavadas, chinelos em pleno Outubro, camisa aberta até
ao umbigo, palavras roucas obsidiadas pelo bafo a álcool. Tem o “O Livro do
Meio”, perguntou assertivamente. Fiquei todo satisfeito, tinha o livro e sabia
perfeitamente onde. O resto copio daqui, chamando a vossa atenção para o preço
a que estava a obra há 3 anos: o homem pegou no livro com cuidado, diria
mesmo carinhosamente, sendo-lhe perfeitamente perceptível a comoção. Agarrou no
objecto com as duas mãos, olhou-me nos olhos e explicou-se: «sou amigo de
infância do Armandinho, disseram-me que ele fala de mim neste livro». Não sei
se falava, se não, mas cheguei a contar esta história ao autor visado. Por
razões que não aprofundarei, guardei para sempre o olhar daquela figura
que se me apresentou em dia de estreia como um dos mais exemplares poderes
desta inútil actividade que é escrever livros. E vendê-los, acrescento.
Os
anos foram passando e, como disse, raramente vendi um livro com o nome de Maria Velho da Costa na capa. Talvez
um ou dois exemplares de “Myra” (2008), em saldo, apesar da boa exposição que
sempre mereceu por se tratar de uma edição com um dos selos do grupo detentor
da livraria onde trabalhei. Se as livrarias estivessem abertas como estavam
quando Agustina faleceu, talvez agora a autora chegasse aos tops. Como
estão, há sempre a desculpa de ficar para depois. De Agustina, já o disse, só
vendi livros na semana que se seguiu à sua morte. Imagino que com Velho da Costa
se passasse o mesmo agora, apesar das inúmeras notas de pesar e das citações
replicadas, repetidas, copiadas, de usuário para usuário, sem qualquer
referência à fonte bibliográfica.
Ruy Belo dizia que era uma desvantagem nascer
em Portugal, também por isto, Almada acusava um país em que Camões morreu de
fome para que todos possam encher a boca com Camões, e disto não nos
livraremos. Unidos pelo presente e pelo futuro da cultura em Portugal, mas
cagando (é este o termo) para editores, autores, outros pares de um mesmo universo que pode
definhar sem que mal venha ao mundo. Temos sol e praia, precisamos de mais
cultura para quê?
Por razões diferentes, que talvez venha a explicar, estes são os meus preferidos:
Fátima
Fadada foste ao gesto e à
palavra
o corpo tão daninho que te habita
mulher que não domaste e te desgosta
maina que te possui
plácida escondida
Escassa é a medida
em que te evitas
e nunca saciada ao próprio espanto
quebras
nela o risco
em ti o que persiste no metal luminoso
em que te encerras
Não é pois já em ti
que o sol tem o bronze
mas antes nela o som a prata trabalhada
a luz que lembra a forma e no poente
enterra até ao fundo a sua faca
Se tens domada a raiva
no seu gume
tão fêmea tu e firme na febre
debruçada
atenta és à pele onde suspendes
os dedos na pressa da voragem
Que abandonada estás
fátima por ti
e bem amada
Vingada vens do tempo
e a venceste
tão bem talhada ao peito
em que a criaste
no maneio de anca nas coxas que crispaste
a ladear a cama em que a perdeste
De sede Fátima devoras a firmeza
e tão fecunda ou dor
tornaste a tua fala
que és teu próprio alimento e teu sustento
na solidão imensa em que
resvalas
Que maina foste
mulher que te mantém
maldição de terra envenenada
intacta suspeita e boca amena
cintura branda
joelhos-madrugada
Se mágoa desmanchas fátima
em segredo
como quem borda o pano sobre as nádegas
a camisa descansas costurada
por mãos que maina
recusava
a só estar presa
O nojo conheceste e o mordeste
o trocaste em fruto de paisagem
na rua desenhada
que escolheste
para gerares futuro em tua casa
Que abandonada estás
fátima por ti
e bem amada
Faminta te darás
avessa te conheço
a deixares embora sem desgosto
que alguém te possua pelo corpo
se caça fores somente e de seu preço
teres de ceder à arma a linha do pescoço
Pecado de mudez que não
a tua
só maina na herança de outras vozes
nunca pactua
Malquerença que descobres
brevemente
talvez ferida fátima ou ferro fátuo
que de manso o verão te chega aos nervos
e nunca o mar obrigas sob os braços
nas tão breves arestas de alegria
que tu alheia usas sobre o fato
Fadada foste então
à luz
e às secas margens
aos lisos gestos tão fiéis a maina
que áridos parecem mas não fáceis
de ti te distancias
e a medida é justa
como se de roupa fátima te fosse executada
à água
Maligna pois te habita maina
ou tu te habitas fátima
em palavras
11/3/71
In “Novas Cartas Portuguesas”, Maria Isabel Barreno,
Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Editoria Futura, Maio de 1974, pp. 18-21.
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