sábado, 23 de maio de 2020

MARIA VELHO DA COSTA (1938-2020)



Duas histórias que já terei contado, mas recupero agora. “O Livro do Meio: romance epistolar” (2006), escrito a meias entre Maria Velho da Costa e Armando Silva Carvalho, foi dos primeiros livros, senão o primeiro, que vendi durante o meu percurso de aprendiz de livreiro. Onze anos passados na profissão, não me recordo de vender outros livros de Maria Velho da Costa. À excepção de um. Lá iremos. 

Entretanto, a lembrança do homem das calças de ganga deslavadas, chinelos em pleno Outubro, camisa aberta até ao umbigo, palavras roucas obsidiadas pelo bafo a álcool. Tem o “O Livro do Meio”, perguntou assertivamente. Fiquei todo satisfeito, tinha o livro e sabia perfeitamente onde. O resto copio daqui, chamando a vossa atenção para o preço a que estava a obra há 3 anos:  o homem pegou no livro com cuidado, diria mesmo carinhosamente, sendo-lhe perfeitamente perceptível a comoção. Agarrou no objecto com as duas mãos, olhou-me nos olhos e explicou-se: «sou amigo de infância do Armandinho, disseram-me que ele fala de mim neste livro». Não sei se falava, se não, mas cheguei a contar esta história ao autor visado. Por razões que não aprofundarei, guardei para sempre o olhar daquela figura que se me apresentou em dia de estreia como um dos mais exemplares poderes desta inútil actividade que é escrever livros. E vendê-los, acrescento.

Os anos foram passando e, como disse, raramente vendi um livro  com o nome de Maria Velho da Costa na capa. Talvez um ou dois exemplares de “Myra” (2008), em saldo, apesar da boa exposição que sempre mereceu por se tratar de uma edição com um dos selos do grupo detentor da livraria onde trabalhei. Se as livrarias estivessem abertas como estavam quando Agustina faleceu, talvez agora a autora chegasse aos tops. Como estão, há sempre a desculpa de ficar para depois. De Agustina, já o disse, só vendi livros na semana que se seguiu à sua morte. Imagino que com Velho da Costa se passasse o mesmo agora, apesar das inúmeras notas de pesar e das citações replicadas, repetidas, copiadas, de usuário para usuário, sem qualquer referência à fonte bibliográfica.

Ruy Belo dizia que era uma desvantagem nascer em Portugal, também por isto, Almada acusava um país em que Camões morreu de fome para que todos possam encher a boca com Camões, e disto não nos livraremos. Unidos pelo presente e pelo futuro da cultura em Portugal, mas cagando (é este o termo) para editores, autores, outros pares de um mesmo universo que pode definhar sem que mal venha ao mundo. Temos sol e praia, precisamos de mais cultura para quê?

Por razões diferentes, que talvez venha a explicar, estes são os meus preferidos:





Fátima


Fadada foste ao gesto e à
palavra
o corpo tão daninho que te habita
mulher que não domaste e te desgosta
maina que te possui
plácida escondida

Escassa é a medida
em que te evitas
e nunca saciada ao próprio espanto
quebras
nela o risco
em ti o que persiste no metal luminoso
em que te encerras

Não é pois já em ti
que o sol tem o bronze
mas antes nela o som a prata trabalhada
a luz que lembra a forma e no poente
enterra até ao fundo a sua faca

Se tens domada a raiva
no seu gume
tão fêmea tu e firme na febre
debruçada
atenta és à pele onde suspendes
os dedos na pressa da voragem

Que abandonada estás
fátima por ti
e bem amada

Vingada vens do tempo
e a venceste
tão bem talhada ao peito
em que a criaste
no maneio de anca nas coxas que crispaste
a ladear a cama em que a perdeste

De sede Fátima devoras a firmeza
e tão fecunda ou dor
tornaste a tua fala
que és teu próprio alimento e teu sustento
na solidão imensa em que
resvalas

Que maina foste
mulher que te mantém
maldição de terra envenenada
intacta suspeita e boca amena
cintura branda
joelhos-madrugada

Se mágoa desmanchas fátima
em segredo
como quem borda o pano sobre as nádegas
a camisa descansas costurada
por mãos  que maina recusava
a só estar presa
O nojo conheceste e o mordeste
o trocaste em fruto de paisagem
na rua desenhada
que escolheste
para gerares futuro em tua casa

Que abandonada estás
fátima por ti
e bem amada

Faminta te darás
avessa te conheço
a deixares embora sem desgosto
que alguém te possua pelo corpo
se caça fores somente e de seu preço
teres de ceder à arma a linha do pescoço

Pecado de mudez que não
a tua
só maina na herança de outras vozes
nunca pactua

Malquerença que descobres
brevemente
talvez ferida fátima ou ferro fátuo
que de manso o verão te chega aos nervos
e nunca o mar obrigas sob os braços
nas tão breves arestas de alegria
que tu alheia usas sobre o fato

Fadada foste então
à luz
e às secas margens
aos lisos gestos tão fiéis a maina
que áridos parecem mas não fáceis

de ti te distancias
e a medida é justa
como se de roupa fátima te fosse executada
à água

Maligna pois te habita maina
ou tu te habitas fátima
em palavras

11/3/71


In “Novas Cartas Portuguesas”, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Editoria Futura, Maio de 1974, pp. 18-21.

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