segunda-feira, 15 de junho de 2020

UM POEMA DE REGINA GUIMARÃES



CÂNTICO DO TELHADO

Escrevo no tampo da mesa
depois de ter esbanjado todas as folhas
com palavras a azul ultramarino
donde os navios não regressam

Dadas ou roubadas
outrora as palavras buscavam
a água parada entre rochas e corais
ou mesmo a do cais
devassada, negra e imunda

Escrevo no tampo da mesa
com a ponta da faca
depois de ter esgotado
a fibra maternal
a corda sensível
e a veia artística.
Fico sem acordo
como se tivesse cortado os pulsos
para verificar a cor do sangue

Saberia voltar ao passado
mas não chegar a horas ao presente.
Saberia chorar sobre o leite derramado
mas não alimentar os olhos recém-nascidos
Saberia até deixar-me matar
mas não abandonando o corpo à lâmina

Dadas ou roubadas
as palavras mudam de cavalgadura
e dormem imóveis por cima dum paiol
e dormem douradas sobre a palha da granja

Dadas ou roubadas
ladram e ferram
quando outras
em caravana
as ultrapassam


Regina Guimarães, in traumatório, com desenhos de Ricardo Castro, Douda Correria, s/p, Março de 2020.

1 comentário:

Gato Aurélio disse...

que durmam douradas.
que ladrem e ferrem.

muito bom!