CÂNTICO DO TELHADO
Escrevo no tampo da mesa
depois de ter esbanjado todas as folhas
com palavras a azul ultramarino
donde os navios não regressam
Dadas ou roubadas
outrora as palavras buscavam
a água parada entre rochas e corais
ou mesmo a do cais
devassada, negra e imunda
Escrevo no tampo da mesa
com a ponta da faca
depois de ter esgotado
a fibra maternal
a corda sensível
e a veia artística.
Fico sem acordo
como se tivesse cortado os pulsos
para verificar a cor do sangue
Saberia voltar ao passado
mas não chegar a horas ao presente.
Saberia chorar sobre o leite derramado
mas não alimentar os olhos recém-nascidos
Saberia até deixar-me matar
mas não abandonando o corpo à lâmina
Dadas ou roubadas
as palavras mudam de cavalgadura
e dormem imóveis por cima dum paiol
e dormem douradas sobre a palha da granja
Dadas ou roubadas
ladram e ferram
quando outras
em caravana
as ultrapassam
Regina Guimarães, in traumatório, com desenhos de Ricardo Castro, Douda Correria, s/p, Março de 2020.
1 comentário:
que durmam douradas.
que ladrem e ferrem.
muito bom!
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