domingo, 27 de dezembro de 2020

TATUAGENS DE LUZ

Leonor da Conceição Pinto de Almeida, sabemo-lo agora, nasceu a 25 de Abril de 1909. Quando, em Janeiro e Fevereiro de 2016, escrevi sobre ela aqui e aqui, eram poucos os dados biográficos disponíveis, vagas as informações, erróneos alguns dos apontamentos que julgávamos credíveis. Cláudia Clemente (n. 1970), autora de Tatuagens de Luz — Para uma imagem de Leonor de Almeida (Documenta, Agosto de 2020), surgiu na caixa de comentários de um desses posts à procura de informações. Perseguia então o rasto de uma poeta misteriosamente desaparecida, depois de haver impressionado nas décadas de 1950 e 1960 um meio literário predominantemente masculino. Mais do que biografia, o livro de Cláudia Clemente é sobre a tentativa de reconstruir uma história de vida resgatando da obscuridade uma figura ímpar das letras portuguesas. A investigação terá começado no dia 29 de Janeiro de 2016, motivada pela perda da mãe e a herança de um quadro de Moniz Pereira (n. 1920 – m. 1989) que teria sido vendido à avó da autora por uma esteticista que fora companheira de Alexandre Pinheiro Torres (n. 1923 – m. 1999). Leonor de Almeida, cuja estreia em 1947 com Caminhos Frios fora promovida como grande revelação da poesia portuguesa, era a esteticista em causa. Além deste fulgurante livro de estreia, foi autora de mais três obras — Luz do Fim (1950), Rapto (1953) e Terceira Asa (1960) —, o que lhe valeu ser incluída em antologias de relevo, referenciada em diversos artigos na imprensa de então, mencionada por vários dos seus pares como uma das vozes mais significativas da poesia portuguesa. Pouco depois do poemário derradeiro, silenciou-se, desapareceu, não mais se soube dela. Numa entrevista ao Diário do Minho, datada de Janeiro de 1947, percebemos estar diante de uma mulher verdadeiramente invulgar para o Portugal daquele tempo. Refere-se a Verlaine e Rimbaud como poetas de eleição, cita Taine, inventaria autores predilectos: Maurois, Ludwig, Maugham, Romain Rolland. Raro, num país onde o analfabetismo grassava e as mulheres eram educadas para ficar em casa a cuidar da família. De um primeiro casamento em 1930, a poeta de Caminhos Frios teve um filho em 1931. Não se quedou entre as paredes do lar. Frequentou o curso de Enfermeiras-Visitadoras de Higiene entre 1932 e 1933, ficando aprovada com Distinção. Divorciou-se em 1936. Há registo de se haver inscrito, em 1950, na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Voltou a casar-se em 1951 com um homem 14 anos mais novo, ao que parece explicador do filho, o poeta, crítico literário e historiador Alexandre Pinheiro Torres (n. 1923 - m. 1999). O segundo casamento durou 10 anos, tendo sido a causa do divórcio o adultério do marido. À traição correspondeu o silenciamento da poeta. No Balanço da Poesia em 1950, publicado em A Serpente, Leonor de Almeida e Alexandre Pinheiro Torres, que se estreara em 1950 com Novo Génesis, surgem lado a lado: «Alexandre traduzia, dava aulas, e começou a enveredar pela crítica literária; Leonor era enfermeira e, segundo informação contida na edição de 1959 da Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, de Maria Alberta Menéres e Ernesto Melo e Castro, era também «proprietária de um Instituto de Beleza e Laboratório de Cosmética»» (p. 166). Chegaram a trabalhar conjuntamente em traduções e não é de todo desprovido de sentido que tenha sido Leonor a incentivar o jovem Alexandre para a poesia. Mais tarde, Egito Gonçalves (n. 1920 – m. 2001), editor de A Serpente, amigo de ambos, terá tentado recuperar a obra de Leonor do silenciamento em que caíra. Em vão. A viver em Copenhaga, a poeta escreve a João Gaspar Simões (n. 1903 – m. 1987) em Fevereiro de 1961: «Vivo à parte, isolada, não bem por temperamento, mas porque um destino de frustrações e desaires sentimentais me condicionou a uma soledade que se concilia perfeitamente com os meus complexos. Ignoro, portanto, bastante do que os poetas sentem perante uma crítica» (p. 184). As páginas finais de Tatuagens de Luz são dolorosas, são páginas de perda e de abandono, de isolamento, de um apagamento que não teve em vista apenas o afastamento da vida literária. Uma inundação levou-lhe pertences, eventualmente um original, a tristeza levou-lhe o resto. Leonor de Almeida mudou-se para Lisboa, «usava peruca e escondia-se sob um nome falso» (p. 251), D. Márcia, trabalhava como esteticista. Morreu só, em 1983, rodeada de papéis que foram deitados no lixo depois de os bombeiros darem com o cadáver de «Leonor deitada sobre a cama, segurando o telefone preto. O auscultador estava fora do descanso, na sua mão» (p. 253). Deixemos os pormenores para quem venha a ler o belíssimo livro de Cláudia Clemente, enriquecido com inúmeras fotografias, reproduções de artigos de imprensa, excertos de cartas, poemas da autora. Tatuagens de Luz excede aquilo a que se propõe, libertando não só do esquecimento uma extraordinária poeta, como permitindo que a luz ilumine esse mistério da escrita enquanto ponto de encontro com o sentido da nossa existência. A lição que retiramos do caso Leonor de Almeida relaciona-se com o poder da palavra impressa. Há qualquer coisa de mágico nessa reunião com o outro através das palavras. É como se estas fossem os genes de uma memória que imita o destino das marés. 

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