Leonor da Conceição Pinto de
Almeida, sabemo-lo agora, nasceu a 25 de Abril de 1909. Quando, em Janeiro e
Fevereiro de 2016, escrevi sobre ela aqui e aqui, eram poucos os dados biográficos
disponíveis, vagas as informações, erróneos alguns dos apontamentos que
julgávamos credíveis. Cláudia Clemente (n. 1970), autora de Tatuagens de Luz —
Para uma imagem de Leonor de Almeida (Documenta, Agosto de 2020), surgiu na
caixa de comentários de um desses posts à procura de informações. Perseguia
então o rasto de uma poeta misteriosamente desaparecida, depois de haver impressionado
nas décadas de 1950 e 1960 um meio literário predominantemente masculino. Mais
do que biografia, o livro de Cláudia Clemente é sobre a tentativa de reconstruir
uma história de vida resgatando da obscuridade uma figura ímpar das letras portuguesas.
A investigação terá começado no dia 29 de Janeiro de 2016, motivada pela perda
da mãe e a herança de um quadro de Moniz Pereira (n. 1920 – m. 1989) que teria
sido vendido à avó da autora por uma esteticista que fora companheira de
Alexandre Pinheiro Torres (n. 1923 – m. 1999). Leonor de Almeida, cuja estreia
em 1947 com Caminhos Frios fora promovida como grande revelação da poesia
portuguesa, era a esteticista em causa. Além deste fulgurante livro de estreia,
foi autora de mais três obras — Luz do Fim (1950), Rapto (1953) e Terceira
Asa (1960) —,
o que lhe valeu ser incluída em antologias de relevo, referenciada em diversos
artigos na imprensa de então, mencionada por vários dos seus pares como uma das
vozes mais significativas da poesia portuguesa. Pouco depois do poemário derradeiro,
silenciou-se, desapareceu, não mais se soube dela. Numa entrevista ao Diário do
Minho, datada de Janeiro de 1947, percebemos estar diante de uma mulher verdadeiramente
invulgar para o Portugal daquele tempo. Refere-se a Verlaine e Rimbaud como
poetas de eleição, cita Taine, inventaria autores predilectos: Maurois, Ludwig,
Maugham, Romain Rolland. Raro, num país onde o analfabetismo grassava e as
mulheres eram educadas para ficar em casa a cuidar da família. De um primeiro
casamento em 1930, a poeta de Caminhos Frios teve um filho em 1931. Não se
quedou entre as paredes do lar. Frequentou o curso de Enfermeiras-Visitadoras
de Higiene entre 1932 e 1933, ficando aprovada com Distinção. Divorciou-se em
1936. Há registo de se haver inscrito, em 1950, na Associação dos Jornalistas e
Homens de Letras do Porto. Voltou a casar-se em 1951 com um homem 14 anos mais
novo, ao que parece explicador do filho, o poeta, crítico literário e
historiador Alexandre Pinheiro Torres (n. 1923 - m. 1999). O segundo casamento durou 10 anos, tendo
sido a causa do divórcio o adultério do marido. À traição correspondeu o
silenciamento da poeta. No Balanço da Poesia em 1950, publicado em A Serpente,
Leonor de Almeida e Alexandre Pinheiro Torres, que se estreara em 1950 com Novo
Génesis, surgem lado a lado: «Alexandre traduzia, dava aulas, e começou a
enveredar pela crítica literária; Leonor era enfermeira e, segundo informação
contida na edição de 1959 da Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, de Maria
Alberta Menéres e Ernesto Melo e Castro, era também «proprietária de um
Instituto de Beleza e Laboratório de Cosmética»» (p. 166). Chegaram a trabalhar
conjuntamente em traduções e não é de todo desprovido de sentido que tenha sido
Leonor a incentivar o jovem Alexandre para a poesia. Mais tarde, Egito
Gonçalves (n. 1920 – m. 2001), editor de A Serpente, amigo de ambos, terá
tentado recuperar a obra de Leonor do silenciamento em que caíra. Em vão. A
viver em Copenhaga, a poeta escreve a João Gaspar Simões (n. 1903 – m. 1987) em
Fevereiro de 1961: «Vivo à parte, isolada, não bem por temperamento, mas porque
um destino de frustrações e desaires sentimentais me condicionou a uma soledade
que se concilia perfeitamente com os meus complexos. Ignoro, portanto, bastante
do que os poetas sentem perante uma crítica» (p. 184). As páginas finais de
Tatuagens de Luz são dolorosas, são páginas de perda e de abandono, de
isolamento, de um apagamento que não teve em vista apenas o afastamento da vida
literária. Uma inundação levou-lhe pertences, eventualmente um original, a
tristeza levou-lhe o resto. Leonor de Almeida mudou-se para Lisboa, «usava
peruca e escondia-se sob um nome falso» (p. 251), D. Márcia, trabalhava como
esteticista. Morreu só, em 1983, rodeada de papéis que foram deitados no lixo
depois de os bombeiros darem com o cadáver de «Leonor deitada sobre a cama,
segurando o telefone preto. O auscultador estava fora do descanso, na sua mão»
(p. 253). Deixemos os pormenores para quem venha a ler o belíssimo livro
de Cláudia Clemente, enriquecido com inúmeras fotografias, reproduções de
artigos de imprensa, excertos de cartas, poemas da autora. Tatuagens de Luz excede
aquilo a que se propõe, libertando não só do esquecimento uma extraordinária poeta,
como permitindo que a luz ilumine esse mistério da escrita enquanto ponto de
encontro com o sentido da nossa existência. A lição que retiramos do caso
Leonor de Almeida relaciona-se com o poder da palavra impressa. Há qualquer
coisa de mágico nessa reunião com o outro através das palavras. É como se estas
fossem os genes de uma memória que imita o destino das marés.
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