Catarina foi envolvida nas traições a favor da Prússia e esteve em desgraça junto de Isabel; mas, ambiciosa e fria, soube vencer, penitenciando-se e fingindo querer partir para a Alemanha. Pedro III é que, logo que tomou conta do poder, assinou a paz com a Alemanha e pôs ao serviço de Frederico II as mesmas tropas, que o tinham vencido. Ao mesmo tempo faz saber as suas intenções de repudiar Catarina por adultério e casar com a amante. O descontentamento contra Pedro III por tal política de traição deu a Catarina os meios de defesa pessoal e o claro papel de escolher para sempre a grandeza da Rússia como sendo a sua própria grandeza. É assim que é vencido Pedro III e enclausurado, sob a guarda de Alexis Orlof, irmão do actual amante de Catarina. Passados poucos dias morria o imperador, assassinado, sem ordem expressa de Catarina e por amável habilidade e diligência de Alexis Orlof.
Eis Catarina imperatriz de todas as Rússias. Educada na leitura de Voltaire, Bayle, Montesquieu, Becaria, amiga de D'Alembert, que chegou a convidar para preceptor do grão-duque, era Catarina uma mulher de vontade fria, dominando até os assaltos de seu temperamento erótico. Os seus amantes, que foram numerosos e variados, jamais a governaram, antes a serviram como mulher e como soberana. As ofertas tentadoras feitas a D'Alembert levavam claramente a intenção de serviço da Rússia pela valorização do herdeiro do trono. D'Alembert não aceitou, e, pensando no fim de Pedro III e na causa oficial da sua morte, escrevia a Voltaire: — «Je suis trop sujet aux hémorroides; elles sont trop sérieuses en ce pays-là, et je veux avoir mal au derrière en toute sécurité.»
O governo de Catarina é uma tentativa de engrandecimento da Rússia, seguindo o caminho de Pedro-o-Grande. Quando Falconet acaba a estátua equestre de Pedro, é este nome que vai ser gravado, em abraço de glória, com o de Catarina. A sua política exterior é de expansão e engrandecimento. A interior é de organização, ordem e despotismo ao serviço do país. Em política interior nunca a grande Catarina tomou a sério as suas próprias ideias de liberalismo, emancipação e humanitarismo. No entanto há na sua vida duas tonalidades liberalistas:antes e depois de Pugatchev e da Revolução Francesa. Escritora, dirige a literatura, cria revistas e jornais, polemiza com os outros escritores; mas suspende os jornais, quando a polémica a incomoda. Reformadora, começa pelo célebre Nakaz, normas para a comissão encarregada de fazer uma nova codificação das leis. A assembleia reunida para esse fim não conseguiu o acordo e o seu trabalho foi inferior , desconexo e incompleto. Das reformas saiu beneficiada a nobreza, que Catarina organizou em ordem privilegiada, que só podia ser julgada por membros da classe. A sua qualidade de nobres e a posse da terra não ficavam dependentes dos serviços, e era esta exclusiva da classe. Os comerciantes receberam também alguns privilégios. Sob o ponto de vista administrativo foi o país dividido em governos e distritos, com chefes próprios e com dumas ou assembleias para as cidades e distritos. A justiça era diferenciada e organizada. A instrução foi aumentada, criando-se estabelecimentos de educação feminina. Fundou liceus em vinte e cinco governos, universidades e escolas profissionais. Fizeram-se propósitos de ensino primário obrigatório e criou-se uma Academia. Cedeu ainda Catarina terrenos para vinte e cinco mil famílias vindas da Alemanha para exemplo e penetração cultural. No exterior teve as guerras felizes da Turquia, conquistando-lhe vastas e boas regiões; da Suécia, deixando intactas as fronteiras; e da Pérsia. Realizou-se a partilha definitiva da Polónia, ficando a Rússia com o que lhe faltava, até aí, da Lituânia e toda a Curlândia.
O reinado de Catarina é, portanto, uma época de esplendor e engrandecimento da Rússia, comparável ao de Pedro-o-Grande. Mas, se este foi acusado até de Anticristo, terão sido as reformas de Catarina mais capazes de se insinuarem até à massa da nação, modificando o carácter ou a falta de carácter do nómada psíquico, que é o russo? Nem essas reformas tinham o amor do homem, o amor de amizade, a caridade espiritual, que precisa qualquer conversão e chamamento de almas, nem, de facto, sequer conseguiram modificar mais que a vida das camadas favorecidas. O pobre, o servo, o escravo, digamos, o 85% da população russa nada receberam das mãos de Catarina, tipo literário de humanismo abstracto, de declamação e pretexto mais ou menos retórico. Se os servos tinham vivido em extremos tais que, em 1736, havia meio milhão de fugitivos, se o proprietário condenado a um castigo o podia fazer sofrer por um servo — com Catarina, eles, os servos, não mudam muito na escala da desgraça nesse imenso ergástulo da Rússia. Os servos eram ainda vendidos como bens móveis e os anúncios dos jornais falavam de servos para a compra ou para a venda. Catarina agravou mesmo tal situação, fomentando o jogo cujo imposto aproveitava para receita dos hospícios. Deste modo crescem as dívidas, e o servo vale como hipoteca; é valor a jogar, ou a pagar as dívidas do jogo.
O desenvolvimento industrial, ajudado por Pedro-o-Grande, não criou logo na Rússia o proletário, mas aumentou a venda de servos. Demais o desnivelamento das cotas sociais é aumentado com as reformas de Pedro e Catarina (sobretudo com as desta), subindo a nobreza a uma segurança que nem sequer sonhara com Pedro-o-Grande. Este desnível em valor social e cultura, criou um abismo de classe para classe, um quase monopólio da consciência formal da cultura e de valor de presença do lado da nobreza, e um adormecimento mortal, uma queda no Inferno, da parte das classes pobres. Daí, a quase impossibilidade de relações mais que as de protesto invejoso ou admiração idólatra. Veneração do soldado para a Excelência dum inacessível general, dum camponês ou servo para o senhor e, inversamente, crença miraculosa e de falsa mística na santidade do sofrimento popular, na salvação e resgate por um mergulho niilista no anonimato do Povo. Protestos sempre latentes, incapacidades de aceitação, e recurso permanente aos grandes, que, uma vez perseguidos, eram tomados como heróis duma redenção a tentar. O clamor dum protesto popular encontra sempre um czar ou czarvitch morto, perseguido ou prisioneiro, que vem ajudar, como mito, a rebelião libertadora e será o seu símbolo.
O reinado de Catarina não se livrou de mais um movimento de vagabundagem psíquica, de messianismo e não aceitação absentista. Em 1770 aparece a peste bubónica no Sul da Rússia. As medidas europeias de defesa foram recebidas com horror pela população, que se lvantou. Em Moscovo morreram 50 000 pessoas e só a chegada de Orlof pôde impedir a queda do Kreml. Debelada a epidemia, o movimento continua, fixando-se agora nos cossacos, vizinhos dos Urais. Pugatchev mascara-se de Pedro III e diz que vai entregar ao povo a terra, as águas, os bosques, os montes, etc., que é preciso acabar, pelo extermínio, com os nobres e com os intelectuais. Preso, foge; começa com trezentos homens, e, daí a pouco, toma Oremburgo, Kazan, Pensa, Saratov, à frente de vinte e cinco mil homens. Só Suvorof o derrota completamente, depois de ele ter excedido, em crueldade e destruições, tudo o que fizera Stenka Rasine. Nem a vingança de Catarina lhe pode ser comparada. A não ser que metamos em linha de conta esta infâmia de Catarina e Orlof para a qual não teremos, então, paralelo em Pugatchev. Uma aventureira que se fazia passar por filha da imperatriz Isabel tentava o auxílio da Turquia e outros povos para, de acordo com Pugatchev, se fazer imperatriz da Rússia. Alexis Orlof é incumbido por Catarina de lhe trazer a aventureira. Este visita-a em Itália, apresenta-lhe as suas homenagens, namora-a, jura-lhe um amor a rubro branco e pede-lhe casamento. Ela acredita, e só vê o horror da sua situação, quando, prisioneira na fortaleza de São Pedro e São Paulo, dá à luz uma criança, filha de sua louca ambição e da infâmia dum regicida às ordens duma imperatriz viúva da vítima.
Catarina, já na velhice, mas dum erotismo insaciável, faz passar seus sucessivos amantes pela única condição dum exame médico preventivo; apesar de tudo, é ainda a res publica a sua preocupação, e, como que regressando aos iluminimos filosóficos da sua mocidade, é ainda um La Harpe que escolhe para preceptor dos seus netos. Catarina morre no meio do esplendor do seu governo, vitorioso de tantas guerras, organizador da vida interna e aparentemente, vencedor dos tumultos, periódicas veleidades de rebeldia so seu povo.
Leonardo Coimbra, in A Rússia de Hoje e o Homem
de Sempre (1935). Pedro, o Grande, Catarina Primeira e Pedro II, Ana, Ivã VI & Isabel.
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