terça-feira, 18 de outubro de 2022

MANUAL DA VIDA BREVE

 


Logo à noite, a conversa será com Sandra Costa (1971). “Manual da Vida Breve” foi publicado em 2021 e merece uma leitura mais atenta e aprofundada do que estas palavras sem pretensão crítica podem sintetizar. Aí se reuniu um trabalho poético que envia o leitor para o ano de 2003, embora o primeiro livro da autora tenha sido publicado um ano antes. Que será feito desse “Sob a luz do mar” que de imediato nos surpreendeu com um “Poema sem Verbos”? Em cada livro coligido no volume entretanto editado pela Officium Lectionis percebemos haver um esforço de organização por unidades temáticas, algo que já havíamos reconhecido com as leituras de “Untitled” (2017) e de “Boletim Meteorológico” (2020). Se no primeiro estava em evidência uma relação directa com a arte fotográfica, no segundo foi o glossário meteorológico a oferecer o solo em que os poemas desabrochavam. “Calendário do Advento” (2020), como o subtítulo indica, é uma colectânea de poemas de Natal, ainda que o conceito denote mais uma prática recorrente, através do diálogo com obras de origens diversas, do que uma qualquer submissão a parâmetros previamente estabelecidos. Afinal, o que é um poema de Natal? É um poema escrito nesse período ou é um poema que se escreve sobre esse período? Em “Epigrafia” (2016-2020) sobressai o magma que são os versos dos outros a partir dos quais escrevemos, por vezes reforçando-os, noutras ocasiões desmentindo-os, mas sempre com aquela humildade de quem sabe não estar absolutamente só no mundo: «A solidão não é.» No entanto, o poema é esconderijo e lugar de exílio. Estes surpreendem-me por isso mesmo, pela genuinidade perceptível à leitura, poemas desde o início indiferentes às tendências do seu tempo, mais empenhados na busca desse paradoxal silêncio que as palavras tanto fragmentam quanto aprofundam. Todos os temas repudiados pela pós-modernidade são resgatados neste “Manual da Vida Breve”, sejam eles o mar ou as plantas, os pássaros e as nuvens, o amor, sem cedências a um lirismo bucólico ou idílico, antes com inusitado equilíbrio emocional. Porque as dores subentendem-se, não se expõem nem se exibem. Cada poema é, deste modo, um lugar de silêncio que não pretende impor-se-nos, está diante de nós como uma paisagem que se nos abre e para a qual temos ou não temos disponibilidade. A palavra contemplação readquire sentido, o que poderá soar estranho num período de saturação imagética e ruídos vários. Portanto, trata-se de reaprender a ouvir observando e de reaprender a observar ouvindo. Quem está interessado? De eventuais gritos e fúrias, chegam-nos somente ecos. E não precisamos de mais, pois o essencial revela-se nos pequenos gestos, como neste poema que uns dirão ser sobre o Outono, outros sobre uvas, havendo ainda quem diga que é sobre o medo ou a efemeridade de uma vida, não sendo de todo improvável haver também quem garanta a pés juntos ser este um poema sobre máquinas debulhadoras de milho:
 
11.
 
Não me espanto com as uvas ainda
por colher sobre o velho portão da casa.
 
É Outono e há um cheiro doce que se
sobrepõe ao pó acumulado entre as pedras
do muro em redor, os campos de milho
já foram devastados pelas máquinas e da
terra e do que resta dos caules vem um
outro aroma que me recorda a infância
 
Junto ao velho portão da casa hesito
entre tocar as sombras ou a ferrugem
 
o medo é a minha mão sobre as coisas
ou o tempo que tomba com as colheitas

Sem comentários: