Logo à noite, a conversa será
com Sandra Costa (1971). “Manual da Vida Breve” foi publicado em 2021 e merece
uma leitura mais atenta e aprofundada do que estas palavras sem pretensão
crítica podem sintetizar. Aí se reuniu um trabalho poético que envia o leitor para
o ano de 2003, embora o primeiro livro da autora tenha sido publicado um ano
antes. Que será feito desse “Sob a luz do mar” que de imediato nos surpreendeu
com um “Poema sem Verbos”? Em cada livro coligido no volume entretanto editado
pela Officium Lectionis percebemos haver um esforço de organização por unidades
temáticas, algo que já havíamos reconhecido com as leituras de “Untitled”
(2017) e de “Boletim Meteorológico” (2020). Se no primeiro estava em evidência uma
relação directa com a arte fotográfica, no segundo foi o glossário
meteorológico a oferecer o solo em que os poemas desabrochavam. “Calendário do
Advento” (2020), como o subtítulo indica, é uma colectânea de poemas de Natal,
ainda que o conceito denote mais uma prática recorrente, através do diálogo com
obras de origens diversas, do que uma qualquer submissão a parâmetros
previamente estabelecidos. Afinal, o que é um poema de Natal? É um poema
escrito nesse período ou é um poema que se escreve sobre esse período? Em “Epigrafia”
(2016-2020) sobressai o magma que são os versos dos outros a partir dos quais
escrevemos, por vezes reforçando-os, noutras ocasiões desmentindo-os, mas
sempre com aquela humildade de quem sabe não estar absolutamente só no mundo:
«A solidão não é.» No entanto, o poema é esconderijo e lugar de exílio. Estes surpreendem-me
por isso mesmo, pela genuinidade perceptível à leitura, poemas desde o início
indiferentes às tendências do seu tempo, mais empenhados na busca desse
paradoxal silêncio que as palavras tanto fragmentam quanto aprofundam. Todos os
temas repudiados pela pós-modernidade são resgatados neste “Manual da Vida
Breve”, sejam eles o mar ou as plantas, os pássaros e as nuvens, o amor, sem cedências
a um lirismo bucólico ou idílico, antes com inusitado equilíbrio emocional.
Porque as dores subentendem-se, não se expõem nem se exibem. Cada poema é, deste
modo, um lugar de silêncio que não pretende impor-se-nos, está diante de nós como
uma paisagem que se nos abre e para a qual temos ou não temos disponibilidade. A
palavra contemplação readquire sentido, o que poderá soar estranho num período
de saturação imagética e ruídos vários. Portanto, trata-se de reaprender a
ouvir observando e de reaprender a observar ouvindo. Quem está interessado? De
eventuais gritos e fúrias, chegam-nos somente ecos. E não precisamos de mais,
pois o essencial revela-se nos pequenos gestos, como neste poema que uns dirão
ser sobre o Outono, outros sobre uvas, havendo ainda quem diga que é sobre o
medo ou a efemeridade de uma vida, não sendo de todo improvável haver também
quem garanta a pés juntos ser este um poema sobre máquinas debulhadoras de
milho:
11.
Não me espanto com as uvas
ainda
por colher sobre o velho portão da casa.
É Outono e há um cheiro doce
que se
sobrepõe ao pó acumulado entre as pedras
do muro — em redor, os campos de milho
já foram devastados pelas máquinas e da
terra e do que resta dos caules vem um
outro aroma que me recorda a infância —
Junto ao velho portão da casa
hesito
entre tocar as sombras ou a ferrugem
— o medo é a minha mão sobre as
coisas
ou o tempo que tomba com as colheitas —
por colher sobre o velho portão da casa.
sobrepõe ao pó acumulado entre as pedras
do muro — em redor, os campos de milho
já foram devastados pelas máquinas e da
terra e do que resta dos caules vem um
outro aroma que me recorda a infância —
entre tocar as sombras ou a ferrugem
ou o tempo que tomba com as colheitas —
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