domingo, 30 de março de 2025

QUATRO QUARTETOS

 

Depois da tradução de Gualter Cunha para a Relógio D’água em 2004, eis-nos de novo perante os Quatro Quartetos de T. S. Eliot, agora numa tradução de Vergílio Alberto Vieira para a Companhia das Ilhas. N.º 4 de uma nova chancela, os livros Nanook, que dificilmente poderia ter melhor arranque. Originalmente publicados em 1943, os Four Quartets são um desses momentos nucleares na história da poesia que se aventura a pensar o essencial erigindo o seu próprio mito da criação. O que Eliot nos propõe nos quatro poemas do conjunto, cada qual dividido em cinco partes a que podemos dar o nome de actos, é uma cosmogonia da modernidade, concebida entre os destroços ainda fumegantes da II Grande Guerra. A epígrafe de Heraclito reenvia-nos para esse tempo de reflexão acerca não só da criação do mundo, mas do Tempo enquanto motor da História, do lugar do homem nessa engrenagem transformadora da paisagem, metamorfose que impele uma reflexão acerca do princípio e do fim, dos ciclos da natureza, dos mitos da regeneração, da morte que se faz vida que tende para a morte. Poema filosófico, na tradição dos grandes clássicos, mas já com essa pulsão moderna que dramatiza o humano no palco da ruína:
 
I
 
O tempo que passou e o tempo que vem
Talvez estejam presentes no devir do tempo
E o tempo ainda por vir no tempo que passou.
Se todo o tempo é, pois, o tempo todo
Todo o tempo é nada
Todo o tempo é ninguém.
O que pudera ter acontecido não ocorreu
Continuando a ser imutável permanência
Num mundo improvável.
Já o que podia ter sido e o que veio a ser
Convergem para um único fim, infinitamente presente.
 
(in Burnt Norton)
 
No poema de Eliot ressoam os sete princípios herméticos, a filosofia imiscui-se com uma ancestral tradição poética — «In my beginning is my end» / «In my end is my beginning» — de renegação da própria poesia enquanto salvação — «The poetry does not matter» — porque tudo tem a morte por fim e «é do fim que se parte», a eternidade subsume-se na vivência do momento que é, ele mesmo, agregador de toda a História. O Universo cabe numa semente. Na semente está o mundo, o presente participa do passado e do futuro, «A única ciência pela qual vale a pena lutar / É a da simplicidade: a humildade é infinita.» Curioso como nesta leitura oferecida pela tradução de Vergílio Alberto Vieira vem mais à tona, com clareza inusitada, a estrada larga de Walt Whitman enquanto princípio fundador de uma poesia anglo-saxónica empenhada em cogitar o lugar do homem no mundo, nesse mundo que é tanto o das construções humanas como o das suas destruições, processo plasmado, desde logo, na imagem da cidade que transforma a paisagem através da devastação da Natureza. Há uma ética subjacente ao poema de Eliot que mergulha a humanidade no leito das águas correntes, a água que corre no rio de Heraclito não é diferente dos povos que circulam na estrada larga, tudo flui para um fim que é começo, o dissídio é a força que se afirma na convergência, tal como em Empédocles o Amor e o Ódio, ou a Discórdia, se explicam um ao outro enquanto motores da História:
 
III
 
Três condições não raro se entretecem
Apesar de nada se parecerem, e na sebe vicejarem:
Amor-próprio e abnegação às coisas e pessoas, desamor
Por si, e pelas coisas e pessoas; e entre ambas, nascendo, indiferença
Com as demais identificando-se como a morte à vida,
E que entre duas vidas cabe — incapaz de florir entre
A urtiga viva e a morta urtiga.
 
(in Little Gidding)
 
Mais sobre Eliot aqui: Prufrock and Other Observations, apontamento biobibliográfico, um poema, citação de uma conferência, mais uma citação, um artigo sobre duas paixões de Eliot.

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