Depois da tradução de Gualter Cunha para
a Relógio D’água em 2004, eis-nos de novo perante os Quatro Quartetos de T. S. Eliot, agora numa tradução de Vergílio
Alberto Vieira para a Companhia das Ilhas. N.º 4 de uma nova chancela, os
livros Nanook, que dificilmente poderia ter melhor arranque. Originalmente
publicados em 1943, os Four Quartets
são um desses momentos nucleares na história da poesia que se aventura a pensar
o essencial erigindo o seu próprio mito da criação. O que Eliot nos propõe nos
quatro poemas do conjunto, cada qual dividido em cinco partes a que podemos dar
o nome de actos, é uma cosmogonia da modernidade, concebida entre os destroços ainda
fumegantes da II Grande Guerra. A epígrafe de Heraclito reenvia-nos para esse
tempo de reflexão acerca não só da criação do mundo, mas do Tempo enquanto
motor da História, do lugar do homem nessa engrenagem transformadora da
paisagem, metamorfose que impele uma reflexão acerca do princípio e do fim, dos
ciclos da natureza, dos mitos da regeneração, da morte que se faz vida que
tende para a morte. Poema filosófico, na tradição dos grandes clássicos, mas já
com essa pulsão moderna que dramatiza o humano no palco da ruína:
I
O
tempo que passou e o tempo que vem
Talvez estejam presentes no devir do tempo
E o tempo ainda por vir no tempo que passou.
Se todo o tempo é, pois, o tempo todo
Todo o tempo é nada
Todo o tempo é ninguém.
O que pudera ter acontecido não ocorreu
Continuando a ser imutável permanência
Num mundo improvável.
Já o que podia ter sido e o que veio a ser
Convergem para um único fim, infinitamente presente.
(in Burnt Norton)
No poema de Eliot ressoam os sete
princípios herméticos, a filosofia imiscui-se com uma ancestral tradição poética
— «In my beginning is my end» / «In my end is my beginning» — de renegação da
própria poesia enquanto salvação — «The poetry does not matter» — porque tudo
tem a morte por fim e «é do fim que se parte», a eternidade subsume-se na
vivência do momento que é, ele mesmo, agregador de toda a História. O Universo
cabe numa semente. Na semente está o mundo, o presente participa do passado e
do futuro, «A única ciência pela qual vale a pena lutar / É a da simplicidade:
a humildade é infinita.» Curioso como nesta leitura oferecida pela tradução de
Vergílio Alberto Vieira vem mais à tona, com clareza inusitada, a estrada larga
de Walt Whitman enquanto princípio fundador de uma poesia anglo-saxónica empenhada
em cogitar o lugar do homem no mundo, nesse mundo que é tanto o das construções
humanas como o das suas destruições, processo plasmado, desde logo, na imagem
da cidade que transforma a paisagem através da devastação da Natureza. Há uma
ética subjacente ao poema de Eliot que mergulha a humanidade no leito das águas
correntes, a água que corre no rio de Heraclito não é diferente dos povos que
circulam na estrada larga, tudo flui para um fim que é começo, o dissídio é a
força que se afirma na convergência, tal como em Empédocles o Amor e o Ódio, ou
a Discórdia, se explicam um ao outro enquanto motores da História:
III
Três condições não raro se entretecem
Apesar de nada se parecerem, e na sebe vicejarem:
Amor-próprio e abnegação às coisas e pessoas, desamor
Por si, e pelas coisas e pessoas; e entre ambas, nascendo, indiferença
Com as demais identificando-se como a morte à vida,
E que entre duas vidas cabe — incapaz de florir entre
A urtiga viva e a morta urtiga.
(in Little Gidding)
Mais sobre Eliot aqui: Prufrock and Other Observations, apontamento biobibliográfico, um poema, citação de uma conferência, mais uma citação, um artigo sobre duas paixões de Eliot.
Talvez estejam presentes no devir do tempo
E o tempo ainda por vir no tempo que passou.
Se todo o tempo é, pois, o tempo todo
Todo o tempo é nada
Todo o tempo é ninguém.
O que pudera ter acontecido não ocorreu
Continuando a ser imutável permanência
Num mundo improvável.
Já o que podia ter sido e o que veio a ser
Convergem para um único fim, infinitamente presente.
Apesar de nada se parecerem, e na sebe vicejarem:
Amor-próprio e abnegação às coisas e pessoas, desamor
Por si, e pelas coisas e pessoas; e entre ambas, nascendo, indiferença
Com as demais identificando-se como a morte à vida,
E que entre duas vidas cabe — incapaz de florir entre
A urtiga viva e a morta urtiga.
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