O poeta Simónides, falando
Co Capitão Temístocles, um dia,
Em cousas de ciência praticando,
Ũa
arte singular lhe prometia,
Que então compunha, com que lhe ensinasse
A lembrar-se de tudo o que fazia;
Onde tão sotis regras lhe mostrasse
Que nunca lhe passassem da memória
Em nenhum tempo as cousas que passasse.
Bem merecia, certo, fama e glória
Quem dava regra contra o esquecimento
Que sepulta qualquer antiga história.
Mas o Capitão claro, cujo intento
Bem diferente estava, porque havia
Do passado as lembranças por tormento,
— Ó ilustre Simónides! — dezia —
Pois
tanto em teu engenho te confias,
Que
mostras à memória nova via,
Se
me desses ῦa arte, que em meus dias
Me
não lembrasse nada do passado,
Oh!
quanto milhor obra me farias!
Se
este excelente dito ponderado
Fosse
por quem se visse estar ausente,
Em
longas esperanças degradado,
Oh!
como bradaria justamente:
—
Simónides, inventa novas artes:
Não
midas o passado co presente!
Que,
se é forçado andar por várias partes
Buscando
à vida algum descanso honesto,
Que
tu, Fortuna injusta, mal repartes;
E
se o duro trabalho é manifesto
Que,
por grave que seja, há-de passar-se
Com
animoso esprito e ledo gesto;
De
que serve às pessoas o lembrar-se
Do
que se passou já, pois tudo passa,
Senão
de entristecer-se e magoar-se?
Se
em outro corpo ῦa alma se trespassa,
Não
como quis Pitágoras, na morte,
Mas
como quer Amor, na vida escassa;
E
se este Amor no mundo está de sorte
Que
na virtude só dum lindo objecto
Tem
um corpo sem alma, vivo e forte;
Onde
este objeito falta, que é defecto
Tamanho
pera a vida que já nela
Me
está chamando à pena a dura Alecto;
Porque
me não criara a minha estrela
Selvático
no mundo, e habitante
Na
dura Cítia, e no mais duro dela?
Ou
no Cáucaso horrendo? Fraco infante,
Criado
ao peito dῦa tigre hircana,
Homem
fora formado de diamante,
Por
que a cerviz ferina e inumana
Não
sometera ao jugo e dura lei
Daquele
que dá vida quando engana.
Ou,
em pago das águas que estilei,
As
que passei do mar foram do Lete,
Pera
que me esquecera o que passei.
Porque
o bem que a vã esperança promete,
Ou
a morte o estorva, ou a mudança.
Que
é mal que ῦa alma em lágrimas derrete.
Já,
Senhor, cairá como a lembrança,
No
mal, do bem passado é triste e dura,
Pois
nace aonde morre a esperança.
E
se quiser saber como se apura
Em
almas saudosas, não se enfade
De
ter tão longa e mísera escritura.
Soltava
Éolo a rédea e liberdade
Ao
manso Favónio brandamente,
E
eu a tinha já solta à saudade.
Neptuno
tinha posto o seu tridente;
A
proa a branca escuma dividia,
Com
a gente marítima contente.
O
coro das nereidas nos seguia;
Os
ventos, namorada Galateia
Consigo,
sossegados, os movia.
Das
argênteas conchinhas, Panopeia
Andava
por o mar fazendo molhos,
Melanto,
Dinamene, com Ligeia.
Eu,
trazendo lembranças por antolhos,
Trazia
os olhos n’água sossegada,
E
a água sem sossego nos meus olhos.
A
bem-aventurança já passada
Diante
de mim tinha tão presente,
Como
se não mudasse o tempo nada.
E
com o gesto imoto e descontente,
Cum
suspiro profundo e mal ouvido,
Por
não mostrar meu mal a toda a gente,
Dezia:
Ó claras Ninfas! se o sentido
Em
puro amor tivestes, e inda agora
Da
memória o não tendes esquecido;
Se,
porventura, fordes algῦa hora
Adonde
entra o grão Tejo a dar tributo
A
Tétis, que vós tendes por Senhora;
Ou
já por ver o verde prado enxuto,
Ou
já por colher ouro rutilante,
Das
tágicas areias rico fruto;
Nelas
em verso erótico e elegante
Escrevei
cῦa concha o que em mim vistes:
Pode
ser que algum peito se quebrante.
E
contando de mim memórias tristes,
Os
pastores do Tejo, que me ouviam,
Ouçam
de vós as mágoas que me ouvistes.
Elas,
que já no gesto me entendiam,
Nos
meneios das ondas me mostravam
Que
em quanto lhes pedia consentiam.
Estas
lembranças, que me acompanhavam
Por
a tranquilidade da bonança,
Nem
na tormenta triste me deixavam.
Porque,
chegando ao cabo da Esperança,
Começo
da saudade que renova,
Lembrando
a longa e áspera mudança;
Debaixo
estando já da estrela nova
Que
no novo hemisfério resplandece,
Dando
do segundo axe certa prova;
Eis
a noute com nuvens se escurece;
Do
ar, subitamente, foge o dia;
E
todo o largo Oceano se embravece.
A
máquina do Mundo parecia
Que
em tormentas se vinha desfazendo;
Em
serras todo o mar se convertia!
Lutando,
Bóreas fero e Noto horrendo
Sonoras
tempestades levantavam,
Das
naus as velas côncavas rompendo.
As
cordas, co ruído, assobiavam;
Os
marinheiros, já desesperados,
Com
gritos pera o Céu o ar coalhavam.
Os
raios por Vulcano fabricados
Vibrava
o fero e áspero Tonante,
Tremendo
os Pólos ambos, de assombrados!
Amor
ali, mostrando-se possante,
E
que por algum medo não fugia,
Mas
quanto mais trabalho, mais constante,
Vendo
a morte presente, em mim dezia:
—
Se algῦa hora, Senhora, vos lembrasse,
Nada
do que passei me lembraria. —
Enfim,
nunca houve cousa que mudasse
O
firme amor intrínseco daquele
Em
quem algῦa vez de siso entrasse.
Ũa
cousa, Senhor, por certa assele,
Que
nunca Amor se afina nem se apura,
Enquanto
está presente a causa dele.
Destarte
me chegou minha ventura
A
esta desejada e longa terra,
De
todo pobre honrado sepultura.
Vi
quanta vaidade em nós se encerra,
E
nós próprios quão pouca; contra quem
Foi
logo necessário termos guerra.
Ũa
ilha que o rei de Porcá tem,
E
que o rei da Pimenta lhe tomara,
Fomos
tomar-lha, e sucedeu-nos bem.
Com
ῦa grossa armada, que juntara
O
Vizo-Rei, de Goa nos partimos
Com
toda a gente de armas que se achara.
E
com pouco trabalho destruímos
A
gente no curvo arco exercitada;
Com
morte, com incêndios os punimos.
Era
a ilha com águas alagada,
De
modo que se andava em almadias;
Enfim,
outra Veneza trasladada.
Nela
nos detivemos sós dous dias,
Que
foram pera alguns os derradeiros,
Pois
passaram da Estige as ondas frias.
Que
estes são os remédios verdadeiros
Que
pera a vida estão aparelhados
Aos
que a querem ter por cavaleiros.
Oh!
lavradores bem-aventurados!
Se
conhecessem seu contentamento,
Como
vivem no campo sossegados!
Dá-lhes
a justa terra o mantimento;
Dá-lhes
a fonte clara de água pura;
Mungem
suas ovelhas cento a cento.
Não
vêem o mar irado, a noute escura,
Por
ir buscar à pedra do Oriente;
Não
temem o furor da guerra dura.
Vive
um com suas árvores contente,
Sem
lhe quebrar o sono repousado
A
grã cobiça do ouro reluzente.
Se
lhe falta o vestido perfumado,
E
da fermosa cor assíria tinto,
E
dos torçais atálicos lavrado;
Se
não têm as delícias de corinto,
E
se de Pário os mármores lhe faltam,
O
piropo, a esmeralda e o jacinto;
Se
suas casas de ouro não se esmaltam,
Esmalta-se-lhe
o campo de mil flores,
Onde
os cabritos seus, comendo, saltam.
Ali
lhe mostra o campo várias cores;
Vêem-se
os ramos pender co fruito ameno;
Ali
se afina o canto dos pastores;
Ali
cantara Títiro e Sileno,
Enfim,
por estas partes caminhou
A
sã Justiça pera o Céu sereno.
Ditoso
seja aquele que alcançou
Poder
viver na doce companhia
Das
mansas ovelhinhas que criou!
Este,
bem facilmente alcançaria
As
causas naturais de toda a cousa:
Como
se gera a chuva e neve fria;
Os
trabalhos do Sol, que não repousa,
E
porque nos dá a Lua a luz alheia,
Se
tolher-nos de Febo os raios ousa;
E
como tão depressa o Céu rodeia;
E
como um só os outros traz consigo;
E
se é benina ou dura Citereia.
Bem
mal pode entender isto que digo
Quem
há-de andar seguindo o fero Marte,
Que
sempre os olhos traz em seu perigo.
Porém
seja, Senhor, de qualquer arte;
Pois
posto que a Fortuna possa tanto
Que
tão longe de todo o bem me aparte,
Não
poderá apartar meu curo canto
Desta
obrigação sua, enquanto a morte
Me
não entrega ao duro Radamanto;
Se
pera tristes há tão leda sorte.
Luís
de Camões (1524? – 1580?)