terça-feira, 14 de maio de 2024

VÓMITO

 


Quando a Academia do Sporting em Alcochete foi invadida, o Bruno de Carvalho não teve culpa. Quando o Capitólio dos Estados Unidos foi atacado, Trump nada teve que ver com o assunto. Quando a Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi tomada de assalto, Bolsonaro não estava lá. Quem instiga, nunca tem culpa, nada tem que ver, nem sequer está. A responsabilidade de quem incita raramente se aprova, quase nunca se condena. O poder de indução é uma espécie de acto mágico que entre causa e efeito se mostra invisível. É por isso que os deputados racistas do Chega, com o aval do Grande Líder Ventura, vão poder continuar diariamente a induzir, a incitar, a sugerir, a manipular, disseminando o medo aqui, o ódio acolá, banalizando um discurso anti-imigração que redundará em acções e factos como este, os do Porto, Algarve e outros. O pânico tomará conta da sociedade portuguesa, cada vez mais dividida para benefício desses que nas redes sociais, na Assembleia da República, nos meios de comunicação social falam em substituição cultural e misturam criminalidade com imigração. Nesta matéria como noutras, o mais vulgar dos crimes nunca será julgado e os criminosos jamais serão condenados. Porque não se julgam instigações nem se condenam instigadores. Só há uma forma de resolver isto, cuspir-lhes na cara. Aos instigadores e a quem vai na conversa deles, dando-lhes o voto. A mim poucas coisas há que me tirem do sério como estas. Vómito.

domingo, 12 de maio de 2024

DE MÁ CONDIÇÃO

 


Calhou assim, não foi propositado. Chegou-nos ontem, Dia Mundial da Árvore e da Poesia, este segundo volume da Colecção Insónia. O primeiro foi "A Dança das Feridas". Esperámos 13 anos por ele, eu, a Maria João Lopes Fernandes e o Pedro Serpa.
 
Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição.
 
Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por Messenger (Facebook, Instagram) ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design e a composição é do Pedro Serpa.
 
Em memória de minha mãe, Clarisse Maria Tavares Bento.
 
Saúde.

UNHAS DE GEL

 
Habitações, escolas, hospitais em ruínas. Sob as ruínas, o cheiro putrefacto dos corpos em decomposição. As bombas não cessam de cair, esventrando mulheres, estropiando velhos, esmagando crianças. Aos milhares. Há relatos de fome, de gente enterrada vida, outros a matarem a sede com água do mar, relatos de tortura, de perseguições, destruição massiva de instalações da Organização das Nações Unidas, jornalistas silenciados, à bala ou à censura, prisões e detenções administrativas, aos milhares, aos milhares. Por cá, celebram-se as unhas da Iolanda. Um statement. E os apelos à paz. E espantam-se pardais com o televoto português, que deu pontuação máxima a Israel. Continuemos a tratar o caso com unhas de gel e outfits. Posição, era não ter cantado. Ficar em silêncio no palco. E mandar aquilo tudo à merda. O resto é só mais um número, espectáculo tão ridículo, boçal e degradante quanto o da Catarina Furtado a cortar uma madeixa de cabelo em solidariedade para com as mulheres iranianas.

sábado, 11 de maio de 2024

OREMOS, SENHOR

 


O grande debate cultural dos grunhos passa por aqui. O deputado da Opus Dei, essa organização católica que ainda tem uma lista de livros proibidos, está indignado com o "espetáculo de Sodoma e Gomorra" que Madonna deu no Brasil e pede a todos os santos que o protejam da estética exibida na Eurovisão pela Irlanda. Esta gente, que passa a vida a queixar-se de doutrinação, quer ensinar-nos o que é estético e moral, não lhes passando sequer pela cabeça que, para outros, um espectáculo de Sodoma e Gomorra possa ser, por exemplo, haver 50 grunhos na Assembleia da República a defender o genocídio de Israel em Gaza. Estes porcos e todos quantos votando neles se permitem chafurdar na porcaria não têm uma palavra pelas vítimas do ódio que não passe por encontrar justificações para o ódio. É esta gente que nos quer dizer o que é moral. É esta gente que nos quer dizer o que é ético e estético. É esta gente, a tal que se diz superior, a mesma que branqueia os crimes da extrema-direita neonazi. Há quem dê votos a esta escumalha oportunista que num minuto diz uma coisa e trinta segundos depois o seu contrário. Não é por burrice, não, é mesmo por grunhice. No fundo, são iguais. Nada há que os diferencie na ignorância assoberbada com que querem impor aos outros os seus estereótipos, preconceitos e lugares-comuns.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

UM POEMA DE VIRGÍLIO MARTINHO

 


Já sei o que se passa no mundo.
Ouvi a música da vitória,
vi a multidão hiante a correr,
os rostos como narizes compridos.

Ouvi as vozes da vitória,
mastigavam como vulcões, mordiam.
Eram todos bonitos, ganharam.
Tinham as caras dos pais, ganiam.

Vieram do campeonato, tinham alma,
eram jovens, comiam, como comiam!
Tisnados da praia, olhos pardos, barba,
tudo que faz parte da agonia.

Têm rabo, picha grande, acne,
são o futuro, conhecem dinheiro,
mas ganharam, alpista para eles,
vitória para nós, parecem bigodes.

Têm razão, são as vozes, os voos
do mundo, são os corredores da morte,
os rapazes do grande balão,
os amortecedores do colchão.

Virgílio Martinho, in Vinte & Um Poemas, suplemento de A Ideia - revista de cultura libertária, n.º 77/80, 2016.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

A BALADA DE AMOR E MORTE DO PORTA-ESTANDARTE CHRISTOPH RILKE

 


14

Descanso! Ser hóspede, por uma vez que fosse. Não satisfazer sempre os seus desejos com escasso sustento. Não aspirar a tudo sempre com hostilidade; por uma só vez, deixar que tudo aconteça, e saber: o que acontece é bom. Mesmo a coragem tem algum dia de estirar-se e cair sobre si no debrum dos cobertores de seda. Não ser sempre soldado. Por uma só vez usar os cabelos soltos e o largo colarinho aberto e ficar sentado em poltronas de seda e até às pontas dos dedos assim:  estar como depois do banho. E voltar a aprender o que são mulheres.  E como fazem as de branco e como são as de azul; que tipo de mãos têm, como cantam o seu riso, quando rapazes louros trazem as belas taças, carregadas de frutos sumarentos.

Rainer Maria Rilke, in A Balada de Amor e Morte do Porta-Estandarte Christoph Rilke, tradução e posfácio de Bruno C. Duarte, Edições do Saguão, Novembro de 2018, p. 37.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

QUANDO FOR GRANDE

 
Quando for grande não quero ter uma página de fãs, nem flores no túmulo, não quero túmulo, nem medalhas, condecorações, prebendas, quando for grande não quero homenagens, almoços literários, o nome numa rua, numa avenida, numa rotunda, nada de toponímia, jamais estátuas e bustos, não quero retratos, não me ofendam com baptismos, patronagem, placas e memoriais. A ser grande, que seja por nada haver em mim que mereça ser lembrado. 

terça-feira, 7 de maio de 2024

MANGANÊS (fragmento)

 


 

(…)
 
Perto do fim, a minha avó ensinou-me a rezar.
Encontrava-a prostrada na cama, indiscernível
entre a amarelidão esvaecida dos lençóis,
a murmurar para dentro as suas preces.
O pequeno corpo sacudido por tremores,
como se a aleijasse a escassa vida
que lhe fluía ainda pelas veias.
Ao mínimo movimento, estalava e rangia,
como uma velha barca sob pressão da intempérie,
afligida por dores no sopor da madrugada.
Pela boca desdentada brotavam-lhe
palavras inaudíveis mas urgentes,
prenhes de misteriosos encantos.
Deixou-me um retrato gasto
que carregava sempre no regaço
e onde se entranhara o seu cheiro
de velhice intensamente requentada em solidão,
embora vivêssemos num apartamento minúsculo,
comprimidos uns contra os outros,
partilhando o mesmo ar saturado,
as mesmas batatas ratadas e insossas.
 
(…)
 
Beatriz de Almeida Rodrigues, in Manganês, colecção elemeNtário n.º 6, Flan de Tal, Maio de 2021, 2.ª edição Março de 2024, p. 29.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

VEM NO OBSERVADOR

 


Deve ser manipulação, deve ser sensacionalismo, talvez anti-semitismo. Ou então é apoio descarado a um criminoso chamado Benjamin Netanyahu. Haja vergonha, se é que resta alguma.

domingo, 5 de maio de 2024

VEM NO PÚBLICO

 
Já foram mortas mais de 13 mil crianças em Gaza, diz ONU

“É um horror. Há fome – fome total – no Norte, e está a avançar para Sul”, afirmou Cindy McCain num excerto de uma entrevista ao programa Meet the Press, do canal NBC, que será transmitida no domingo. “Acredito que é a primeira vez que ouvimos isto. Está a dizer que há fome total no Norte de Gaza?”, questiona a jornalista Kristen Welker. “Sim, estou”, responde a responsável do PAM (Programa Alimentar das Nações Unidas). Welker recorda que ainda não houve uma declaração oficial a anunciar uma situação de “fome total” e McCain explica que o pode afirmar "a partir do que vimos e ouvimos no terreno”.

Feliz dia da mãe e da língua portuguesa e dos demais acordos egolátricos que vos preocupam. Sobreviver é cada vez mais uma arte da ataraxia.

 

sábado, 4 de maio de 2024

ALGUMAS FOLHAS BREVES DE LUÍSA FREIRE

 


 

A paz onde me embrulho
não ignora a guerra
que lá fora acontece.
 
*
 
No carreiro, uma formiga
pára para descansar
e as outras passam por cima.
 
*
 
Buzinas e balidos
definem mundos opostos
de gente semelhante.
 
*
 
Bom é ver, melhor olhar.
Ter uma visão das coisas
até perdê-las de vista.

 
Luísa Freire, in Folhas Breves, Companhia das Ilhas, Março de 2024.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

1. 3M24

A dor facilita a escrita, desbrava caminho à palavra, desvia o pensamento das perturbações quotidianas. Bendita dor, que à semelhança do espectador imoderado na primeira fila me distrais dos planos inclinados da mesquinhez e me restituis à lição paterna primitiva: para ser humilde não é preciso ter passado fome, basta recusar o maná do arrivismo. 

quinta-feira, 2 de maio de 2024

UMA ELEGIA DE LUÍS DE CAMÕES

 
 
O poeta Simónides, falando
Co Capitão Temístocles, um dia,
Em cousas de ciência praticando,
 
Ũa arte singular lhe prometia,
Que então compunha, com que lhe ensinasse
A lembrar-se de tudo o que fazia;
 
Onde tão sotis regras lhe mostrasse
Que nunca lhe passassem da memória
Em nenhum tempo as cousas que passasse.
 
Bem merecia, certo, fama e glória
Quem dava regra contra o esquecimento
Que sepulta qualquer antiga história.
 
Mas o Capitão claro, cujo intento
Bem diferente estava, porque havia
Do passado as lembranças por tormento,
 
 — Ó ilustre Simónides! — dezia —
Pois tanto em teu engenho te confias,
Que mostras à memória nova via,
 
Se me desses ῦa arte, que em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
Oh! quanto milhor obra me farias!
 
Se este excelente dito ponderado
Fosse por quem se visse estar ausente,
Em longas esperanças degradado,
 
Oh! como bradaria justamente:
— Simónides, inventa novas artes:
Não midas o passado co presente!
 
Que, se é forçado andar por várias partes
Buscando à vida algum descanso honesto,
Que tu, Fortuna injusta, mal repartes;
 
E se o duro trabalho é manifesto
Que, por grave que seja, há-de passar-se
Com animoso esprito e ledo gesto;
 
De que serve às pessoas o lembrar-se
Do que se passou já, pois tudo passa,
Senão de entristecer-se e magoar-se?
 
Se em outro corpo ῦa alma se trespassa,
Não como quis Pitágoras, na morte,
Mas como quer Amor, na vida escassa;
 
E se este Amor no mundo está de sorte
Que na virtude só dum lindo objecto
Tem um corpo sem alma, vivo e forte;
 
Onde este objeito falta, que é defecto
Tamanho pera a vida que já nela
Me está chamando à pena a dura Alecto;
 
Porque me não criara a minha estrela
Selvático no mundo, e habitante
Na dura Cítia, e no mais duro dela?
 
Ou no Cáucaso horrendo? Fraco infante,
Criado ao peito dῦa tigre hircana,
Homem fora formado de diamante,
 
Por que a cerviz ferina e inumana
Não sometera ao jugo e dura lei
Daquele que dá vida quando engana.
 
Ou, em pago das águas que estilei,
As que passei do mar foram do Lete,
Pera que me esquecera o que passei.
 
Porque o bem que a vã esperança promete,
Ou a morte o estorva, ou a mudança.
Que é mal que ῦa alma em lágrimas derrete.
 
Já, Senhor, cairá como a lembrança,
No mal, do bem passado é triste e dura,
Pois nace aonde morre a esperança.
 
E se quiser saber como se apura
Em almas saudosas, não se enfade
De ter tão longa e mísera escritura.
 
Soltava Éolo a rédea e liberdade
Ao manso Favónio brandamente,
E eu a tinha já solta à saudade.
 
Neptuno tinha posto o seu tridente;
A proa a branca escuma dividia,
Com a gente marítima contente.
 
O coro das nereidas nos seguia;
Os ventos, namorada Galateia
Consigo, sossegados, os movia.
 
Das argênteas conchinhas, Panopeia
Andava por o mar fazendo molhos,
Melanto, Dinamene, com Ligeia.
 
Eu, trazendo lembranças por antolhos,
Trazia os olhos n’água sossegada,
E a água sem sossego nos meus olhos.
 
A bem-aventurança já passada
Diante de mim tinha tão presente,
Como se não mudasse o tempo nada.
 
E com o gesto imoto e descontente,
Cum suspiro profundo e mal ouvido,
Por não mostrar meu mal a toda a gente,
 
Dezia: Ó claras Ninfas! se o sentido
Em puro amor tivestes, e inda agora
Da memória o não tendes esquecido;
 
Se, porventura, fordes algῦa hora
Adonde entra o grão Tejo a dar tributo
A Tétis, que vós tendes por Senhora;
 
Ou já por ver o verde prado enxuto,
Ou já por colher ouro rutilante,
Das tágicas areias rico fruto;
 
Nelas em verso erótico e elegante
Escrevei cῦa concha o que em mim vistes:
Pode ser que algum peito se quebrante.
 
E contando de mim memórias tristes,
Os pastores do Tejo, que me ouviam,
Ouçam de vós as mágoas que me ouvistes.
 
Elas, que já no gesto me entendiam,
Nos meneios das ondas me mostravam
Que em quanto lhes pedia consentiam.
 
Estas lembranças, que me acompanhavam
Por a tranquilidade da bonança,
Nem na tormenta triste me deixavam.
 
Porque, chegando ao cabo da Esperança,
Começo da saudade que renova,
Lembrando a longa e áspera mudança;
 
Debaixo estando já da estrela nova
Que no novo hemisfério resplandece,
Dando do segundo axe certa prova;
 
Eis a noute com nuvens se escurece;
Do ar, subitamente, foge o dia;
E todo o largo Oceano se embravece.
 
A máquina do Mundo parecia
Que em tormentas se vinha desfazendo;
Em serras todo o mar se convertia!
 
Lutando, Bóreas fero e Noto horrendo
Sonoras tempestades levantavam,
Das naus as velas côncavas rompendo.
 
As cordas, co ruído, assobiavam;
Os marinheiros, já desesperados,
Com gritos pera o Céu o ar coalhavam.
 
Os raios por Vulcano fabricados
Vibrava o fero e áspero Tonante,
Tremendo os Pólos ambos, de assombrados!
 
Amor ali, mostrando-se possante,
E que por algum medo não fugia,
Mas quanto mais trabalho, mais constante,
 
Vendo a morte presente, em mim dezia:
— Se algῦa hora, Senhora, vos lembrasse,
Nada do que passei me lembraria. —
 
Enfim, nunca houve cousa que mudasse
O firme amor intrínseco daquele
Em quem algῦa vez de siso entrasse.
 
Ũa cousa, Senhor, por certa assele,
Que nunca Amor se afina nem se apura,
Enquanto está presente a causa dele.
 
Destarte me chegou minha ventura
A esta desejada e longa terra,
De todo pobre honrado sepultura.
 
Vi quanta vaidade em nós se encerra,
E nós próprios quão pouca; contra quem
Foi logo necessário termos guerra.
 
Ũa ilha que o rei de Porcá tem,
E que o rei da Pimenta lhe tomara,
Fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.
 
Com ῦa grossa armada, que juntara
O Vizo-Rei, de Goa nos partimos
Com toda a gente de armas que se achara.
 
E com pouco trabalho destruímos
A gente no curvo arco exercitada;
Com morte, com incêndios os punimos.
 
Era a ilha com águas alagada,
De modo que se andava em almadias;
Enfim, outra Veneza trasladada.
 
Nela nos detivemos sós dous dias,
Que foram pera alguns os derradeiros,
Pois passaram da Estige as ondas frias.
 
Que estes são os remédios verdadeiros
Que pera a vida estão aparelhados
Aos que a querem ter por cavaleiros.
 
Oh! lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
Como vivem no campo sossegados!
 
Dá-lhes a justa terra o mantimento;
Dá-lhes a fonte clara de água pura;
Mungem suas ovelhas cento a cento.
 
Não vêem o mar irado, a noute escura,
Por ir buscar à pedra do Oriente;
Não temem o furor da guerra dura.
 
Vive um com suas árvores contente,
Sem lhe quebrar o sono repousado
A grã cobiça do ouro reluzente.
 
Se lhe falta o vestido perfumado,
E da fermosa cor assíria tinto,
E dos torçais atálicos lavrado;
 
Se não têm as delícias de corinto,
E se de Pário os mármores lhe faltam,
O piropo, a esmeralda e o jacinto;
 
Se suas casas de ouro não se esmaltam,
Esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
Onde os cabritos seus, comendo, saltam.
 
Ali lhe mostra o campo várias cores;
Vêem-se os ramos pender co fruito ameno;
Ali se afina o canto dos pastores;
 
Ali cantara Títiro e Sileno,
Enfim, por estas partes caminhou
A sã Justiça pera o Céu sereno.
 
Ditoso seja aquele que alcançou
Poder viver na doce companhia
Das mansas ovelhinhas que criou!
 
Este, bem facilmente alcançaria
As causas naturais de toda a cousa:
Como se gera a chuva e neve fria;
 
Os trabalhos do Sol, que não repousa,
E porque nos dá a Lua a luz alheia,
Se tolher-nos de Febo os raios ousa;
 
E como tão depressa o Céu rodeia;
E como um só os outros traz consigo;
E se é benina ou dura Citereia.
 
Bem mal pode entender isto que digo
Quem há-de andar seguindo o fero Marte,
Que sempre os olhos traz em seu perigo.
 
Porém seja, Senhor, de qualquer arte;
Pois posto que a Fortuna possa tanto
Que tão longe de todo o bem me aparte,
 
Não poderá apartar meu curo canto
Desta obrigação sua, enquanto a morte
Me não entrega ao duro Radamanto;
 
Se pera tristes há tão leda sorte.
 
Luís de Camões (1524? – 1580?)

quarta-feira, 1 de maio de 2024

PAUL AUSTER (1947-2024)

 


Nascido e criado em Newark, Nova Jersey, Paul Benjamin Auster viu pela primeira vez a luz do dia a 3 de Fevereiro de 1947. Morreu ontem, 30 de Abril de 2024, com 77 anos. De origem judaica, nomeadamente com raízes na Rússia e na Polónia, conta-se que uma das suas avós assassinou o marido. No início da década de 1970, frequentou a Universidade de Columbia. Foi aí que leu, pela primeira vez, alguns poetas franceses que traduzia enquanto começava a escrever os primeiros poemas. Mudou-se para Paris, onde viveu entre Fevereiro de 1971 e Julho de 1974. Sobreviveu como telefonista, tradutor de Sartre, Mallarmé e Blanchot, etc. De regresso aos Estados Unidos, prosseguiu a carreira de tradutor e começou a escrever artigos na imprensa. Casou com Lydia Davis, de quem teve um filho, em 1977, mas pouco tempo depois divorciaram-se. Chegou a ponderar o abandono da actividade literária. A morte do pai, em 1979, forneceu-lhe novos motivos para a escrita. E em 1981 casou-se novamente, desta feita com a escritora Siri Hustvedt, de quem teve uma filha. Em 1982, publicou "The Invention of Solitude", um volume de memórias tendo por motivo a morte do pai. Seguem-se "Squeeze Play" (1984), como Paul Benjamin, e o início da conhecida Trilogia de Nova Iorque, com "City of Glass" (1985). Os primeiros livros de poemas datam do final da década de 1980. Em 2002, as Quasi Edições editaram em Portugal os seus Selected Poems:
 
EM MEMÓRIA DE MIM MESMO
 
Tão-somente ter cessado.
 
Como se eu pudesse começar
onde cessou a minha voz, eu mesmo
o som de uma palavra
 
que não consigo articular.
 
Tanto silêncio
para trazer à vida
nesta carne apreensiva, o ribombar
do tambor das palavras
na interioridade, tantas palavras
 
perdidas na amplitude do meu mundo
interior, e assim ter sabido
que apesar de mim
 
eu estou aqui.
 
Como se fosse isto o mundo.
 
Paul Auster, in "Poemas Escolhidos", trad. Rui Lage, Quasi Edições, Novembro de 2002, p. 116. Além de escritor, de poeta, romancista, ensaísta, tradutor, Paul Auster é também conhecido no cinema pelo trabalho em filmes tais como "Blue in the Face", "Smoke", "Lulu on the Bridge" e "The Inner Life of Martin Frost". Todos recomendáveis.

terça-feira, 30 de abril de 2024

DE MÁ CONDIÇÃO

 


"De Má Condição" (2024) é o segundo volume da Colecção Insónia, inaugurada com "A Dança das Feridas" (2011). Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João Lopes Fernandes - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição. Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por messenger ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design é do Pedro Serpa . Alguns exemplares já chegaram ao seu destino. A Maria João colocou alguns nas livrarias Poesia Incompleta, Snob ( https://www.livrariasnob.pt/product/de-ma-condicao ) e Tigre de Papel.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

É TEMPO DE ACORDAR

 


O grande líder inventa uma notícia, propaga a mentira e o séquito de reverentes vassalos reproduz, alimentando o ódio e a divisão e o medo, sempre a meter sal nas feridas. Não há Partido Islâmico Português nenhum, nem podia haver, porque, segundo a lei dos partidos políticos, “a denominação [de um partido] não pode basear-se no nome de uma pessoa ou conter expressões directamente relacionadas com qualquer religião ou com qualquer instituição nacional”. Tudo aquilo é mentira, um site humorístico agora inusitadamente renascido das cinzas onde havia adormecido. O que há é 50 mentirosos compulsivos na Assembleia da República, única e exclusivamente interessados em dividir a sociedade portuguesa alimentando fobias e disseminando ódios. O sinal que não podemos ignorar é que esta escumalha existe e quer o poder, alguns até fanáticos da Opus Dei, essa instituição católica onde ainda vigora um Index Librorum Prohibitorum. É tempo de acordar.