segunda-feira, 9 de novembro de 2009

ELOGIO DO CINISMO (5)

A História oficial afasta os cínicos da lupa hermenêutica, prefere ignorá-los ou reduzi-los a meras curiosidades, por vezes apaga-os, provavelmente por culpa de os haver profanado ou destruído nas fogueiras consoladoras das mãos gélidas que edificaram as cidades celestes. Diógenes de Sínope, como vimos, ficou para a história como um inconveniente maltrapilho. A mesma sorte teve Bíon de Buristene, a quem se atribui o início das diatribes ─ «arengas populares, apoiadas em breves pensamentos morais» ─ e a defesa de um cinismo hedonista que fazia depender a felicidade ou a desgraça das opções de cada um. Cercidas foi um poeta que quis ser enterrado com a Ilíada ao colo. Crates de Tebas terá influenciado Zenão de Cício, era filantropo e desprezava os bens materiais. Casou com Hipárquias, de quem sabemos pouco mais que isto: era mulher de Crates e irmã de Métrocles. Este estudou no Liceu de Aristóteles, tendo-se tornado cínico sob influência de Crates. Conta a lenda que ter-se-á peidado enquanto discursava, ficando envergonhado a ponto de se cerrar em casa numa decisiva greve de fome. Crates livrou-o do suicídio, oferecendo-lhe o conforto dos tremoços e explicando-lhe que um peido era algo de que Métrocles não devia envergonhar-se, pois era absolutamente natural um homem peidar-se. E então o próprio Crates ter-se-á peidado, afastando desse modo a vergonha de Métrocles. A anedota é representativa do espírito cínico. Como estudante do Liceu, Métrocles teria aprendido muita coisa, mas não o mais importante, a aceitar-se como era independentemente das convenções sociais. É esta afronta às convenções que caracteriza a escola cínica na sua matriz essencial. As anedotas morais são apenas uma figura de estilo adoptada na defesa de mais baixos valores. Ao mesmo tempo que importunavam a seriedade dos opositores, os homens das Ideias e dos reinados celestes, os cínicos pretendiam o riso na Terra. Não admira, pois, que Métrocles tenha passado a cultivar a anedota, que Menipo de Gadara, um ex-escravo de Sínope, se tenha transformado num humorista inspirador de sátiras ameaçadoras da estabilidade sisuda que as convenções advogam. Estes cínicos não se limitaram a colorir o mundo com as suas gargalhadas, eles foram uma primeira lição sobre o poder satânico do riso, foram a fonte de um eco longínquo que nos chega hoje deturpado pela razão dos inimigos da comédia, os mesmos padres que reduziram a arte a uma representação trágica da vida e limitaram o saber às trombas elegíacas do sentimentalismo mais perverso. A ideia de que a cultura se faz de lágrimas e de tristeza choca com esta alegria anti-cultural, que, não deixando de ser cultura, arroga afirmar-se pela sua própria negação. Veja-se no que deram as poesias burlescas de Mónimo de Siracusa, cuja comicidade nunca ofuscou a seriedade da doutrina. Essa seriedade havia sido radicalmente levada à prática por Diógenes de Sínope, mas encontra uma sombra fiel nesse gesto histórico de Mónimo que consistiu em lançar ao ar o dinheiro do seu patrão, um banqueiro que, curiosamente, lhe havia elogiado a eloquência do mestre Diógenes. Mónimo acabou despedido, juntou-se a Diógenes, seguiu Crates. Não sabemos se alguma vez chegou a ser elogiado pelo antigo patrão, mas sabemos que este não perdeu uma oportunidade para, sempre que podia, qualificar Mónimo de louco. Ora, é precisamente esta hipocrisia de quem elogia à distância, de quem apoia para, na hora da verdade, dar uma curva e voltar as costas, é esta hipocrisia das convenções que os cínicos combatem com humor, sátira, riso, comédia, prazer, mas um prazer independente das ilusões materialistas que escravizam os homens. A busca do prazer que eles denunciaram como sendo uma grande ilusão, era a busca de um prazer que se confundia com a fama, a riqueza, a sede de poder. Eles estavam convencidos de que nenhuma riqueza material oferecia tanto prazer quanto viver liberto das necessidades supérfluas, já que bastava a satisfação das necessidades básicas para que o prazer se consolidasse na carne. Exaltar a autarquia, portanto, contra todo o tipo de convenção que afastasse o homem de si próprio, que negasse o homem, que o transformasse numa besta de carga, em mais uma vaca de pasto. Eis um programa que não podia agradar a quem sempre desagradou tudo o que inflama o músculo do poder e do domínio sobre os outros, porque à História (convencional) convém apenas o que lhe garanta a prevalência do chicote condutora da carneirada.

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