quinta-feira, 26 de outubro de 2017

POESIA PARA O JUIZ

Adelaide Ivánova (n. 1982) é uma jovem poeta brasileira de quem foi publicado em Portugal um livro com o título O Martelo (Douda Correria, Fevereiro 2016), objecto com uma carga simbólica sugestiva que tanto pode remeter para a força revolucionária do proletariado como para o poder de sentenciar nas mãos de um juiz. Para o caso, esta última imagem interessa-nos mais.
No livro de Ivánova a mulher é o centro das atenções, a mulher no lugar de vítima, a mulher violentada, abusada. Aparecem então a figura da delegada, que não leva a mulher a sério, a escrivã a fazer perguntas como se houvesse matemática e geometria numa situação de estupro, os médicos que examinam a mulher enquanto se questionam se vão beber um copo depois do expediente… Aparece também um juiz.
Recentemente, assistimos no nosso país a mais um triste exemplo do que é possível acontecer nos tribunais da República. Um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, ao que julgo saber assinado por um juiz e por uma juíza, justificam com o adultério praticado pela vítima uma brutal situação de violência doméstica. Cito: «Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem». Questiono-me se agredir uma mulher à mocada não será um gravíssimo atentado tanto à honra como à saúde ou integridade física da mulher. Pelos vistos, a honra tem nestes casos um valor que a vida não tem. O que é, no mínimo, uma peculiar hierarquização de valores.
Mas o acórdão vai mais longe, referindo sociedades onde a mulher adúltera é lapidada até à morte e citando a Bíblia. Qualquer pessoa entende a estupidez disto tudo, não sendo sequer necessário acusar de parcialidade ou literalidade o juiz que cita a Bíblia como se a Bíblia fosse um manual de coerência cívica (mais ainda num estado laico). Basta pensar que as tais sociedades aludidas são aquelas contra as quais todos nós, pelo menos assim julgava eu, nos unimos em termos de repúdio e de indignação. Essas sociedades são para nós uma personificação do mal, não servem como exemplo de boas práticas. Não está em causa compreender a dor do traído, está em causa ser injustificável essa dor servir de pretexto para a agressão do traidor.
Voltando a Adelaide Ivánova, entre vários dos seus poemas que poderíamos sugerir para citação num futuro acórdão do Tribunal da Relação do Porto, há um especialmente revelador. Envia-se daqui, ao cuidado do juiz e da juíza que assinaram a aberração supradita:

a sentença
      duas releituras de duas odes de ricardo reis

I
pesa o decreto atroz, o fim certeiro.
pesa a sentença igual do juiz iníquo.
pesa como bigorna em minhas costas:
           um homem foi hoje absolvido.

se a justiça é cega, só o xampu é neutro:
quão pouca diferença na inocência
do homem e das hienas. deixem-me em paz!
           antes encham-me de vinho

a taça, qu’inda que bem ruim me deixe
ébria, console-me a alcoólica amnésia
e olvide o que de fato é tal sentença:
            a mulher é culpada.

II
pese do fiel juiz igual sentença
em cada pobre homem, que não há motivo
para tanto. não fiz mal nenhum à mulher e
             foi grande meu espanto

quando ela se ofendeu. exagerada, agora
reclama, fez denúncia e drama, mas na hora
nem se mexeu. culpa é dela: encheu à brava
             a garbosa cara.

se a justiça é cega, só a topeira é sábia.
celebro abonançado o evidente indulto
pois sou apenas homem, não um monstro! leixai
             à mulher o trauma.



Adelaide Ivánova (n. Recife, Pernambuco, 1982), in O Martelo, Douda Correira, Fevereiro de 2016, s/p. 

5 comentários:

redonda disse...

Pelo que li o Juiz não terá justificado, terá é considerado que devido ao estado em que se encontrava o marido que teria entrado em depressão ao se ver traído, a pena em que foi condenado na primeira instância se deveria manter e não ser agravada
Objectivamente será sempre mau um marido agredir a mulher ou a mulher agredir o marido ou um homem agredir o seu companheiro ou uma mulher agredir a sua companheira, agora dentro do mau há pior, alguém que agride gratuitamente ou porque o seu clube de futebol perdeu deverá em princípio ser objecto de maior censura que alguém que agride porque se sente traído e age num estado de depressão...e é condenado na mesma
não me pareceu muito bem foi aquela citação da Bíblia...(será que se fosse um homem adúltero a citação também se aplicaria?)

hmbf disse...

eh pá, é tudo mau naquele acórdão
tudo
não tem mesmo justificação nenhuma
nem citar a Bíblia, nem códigos de antanho, nem sociedades ancestrais
é tudo péssimo

Ivo disse...

Gostei bastante de referência a um Código Penal de 1886. Como quem diz "até estou a ser mauzinho com o seguido, isto há uns tempos passava incólume". Que filho da puta.

Carlos Ramos disse...

Já não foi a primeira vez que este juiz diz de "sua justiça" saliento que o acórdão é uma decisão colectiva, mais dois juízes concordaram com aquilo, o que torna a situação ainda mais grave. Há aqui uma clara violação da lei e da Constituição, o estado é laico ponto. Fomos motivo de chacota internacional, completamente justificada, uma vergonha de estado. Este tipo de pseudo moralismos não pode caber na aplicação da justiça. Nem todos os acórdãos são publicados, suspeito que pelas mãos deste sr. muita gente tenha sofrido a bom sofrer. Que vá "julgar" para lugares em que a religião é equivalente à lei, peça desculpa e desapareça.

hmbf disse...

Que desapareça apenas, não precisa de pedir desculpa. :-)