quarta-feira, 23 de outubro de 2019

HABEAS CORPUS



   Suponho que um dos maiores desafios colocados a quem escreva um conto seja o de conseguir sintetizar a vida inteira num mínimo de palavras, partindo para tal de uma situação que convide o leitor a embarcar numa viagem sem fim. Os melhores remates deixam tudo em aberto, a "punchline" e o “wit” são meros adereços num cenário sem muros nem fronteiras. Nisto o conto distingue-se do fragmento e do aforismo, frase onde o pensamento se manifesta sem recurso à acção e à personagem. E afasta-se da poesia, quando se afasta, pelo uso de uma linguagem que encerra discursos, gestos, acções, tendencialmente circunscritos a uma situação específica. 
   Se tomarmos de exemplo o conto que oferece título à mais recente colectânea de Carlos Querido (n. 1956), a segunda depois de Insanus (Abysmo, Julho de 2017), perceberemos melhor esta especificidade do conto. A situação é um funeral, as personagens são os amigos do defunto, a acção é o conflito entre os amigos e a família do defunto. Há um motivo para esse conflito. A família pretende um funeral católico convencional, desrespeitando a última vontade do morto. Os amigos empenham-se no cumprimento dessa vontade, a qual incluía cremação, a leitura de um poema de Ruy Belo e subsequente libertação das cinzas ao largo do Cabo Carvoeiro. A solução decorrente do conflito não chega sequer a ser o aspecto mais relevante. Múltiplas seriam as opções. 
   O que se me afigura bem mais relevante é o modo como o tema da morte aparece tratado neste Habeas Corpus (Abysmo, Maio de 2019), tanto neste como nos outros contos do livro. A linguagem jurídica que a expressão latina define não determina o âmbito de acção nestes contos, os quais extravasam amiúde as leis da lógica e da normalidade para confrontarem o leitor com configurações alternativas do real. Se a procura do “sentido da vida” (vide conto “O Confronto”) se processa a partir da constatação da finitude, não deixa de ser verdade que essa mesma busca leva as personagens a olharem mais para o interior de si mesmas do que para fora. 
   A certa altura, no conto “O Regresso a Casa”, deparamos com um final denunciador da filosofia subjacente ao conjunto: «Um dia, cansado de aventuras, suspendeu o olhar em redor e voltou-se para si. Tão insondáveis como o universo, só os enigmas da alma» (p. 31). Ao cansaço colhido da vida corresponde o movimento introspectivo que leva à doença, podendo esta ser entendida não apenas no sentido literal do termo mas enquanto experiência da anormalidade, do desequilíbrio, do defeito, experiência do enigmático e do misterioso. A uma percepção objectiva dos factos (vide conto “O Vidro Embaciado) preferem-se visões alternativas, subjectivas, marcadas pela doença, consultas psiquiátricas, sinais de estranheza, momentos de paralisia, confissões de traumas, angústias, medos, obsessões. E assim como sonham imenso, algumas destas personagens são também perseguidas por insónias causadores de delírios e de alucinações. 
   Carlos Querido oferece voz aos mortos para que os vivos possam falar, é a voz dos mortos que faz ressoar os mistérios recalcados na intimidade dos vivos. Não estranhemos, pois, a dupla vida da personagem no conto com o título “Duplicação”, ou aquela que se sonha árvore, ou a outra que vê saltar do espelho a sua dupla personalidade como quem se sente perseguido pela própria sombra. Os retratos dos antepassados ganham vida e peso, condicionam quem estando vivo adquire a consciência de que está à morte. No conto “O Vírus” alguém diz: «Sinto-me pertencer a um mundo paralelo, mágico, de luzes e combinações infinitas» (p. 71). É um simples técnico de informática quem fala, o que nos leva a pensar que no imo da confissão desse sentimento de pertença paira implícita uma forma de desconexão com o mundo real. Ele não se sente pertença do mundo dito normal, o mundo dos factos objectivos, o mundo das regras, das normas, das leis. O seu “habeas corpus” é a pertença a um mundo alternativo à dimensão sem dúvida nem mistério da existência, é isso que o liberta. Condenado a viver, projecta-se para fora da vida como um artista se projecta na sua criação. Libertando-se. 
   Deste modo, o que estes contos têm para nos comunicar pode também resumir-se usurpando uma frase do conto “Grafitos”: «Tinham morrido há muito, sem se aperceberem» (p. 101). E para tanto bastou arrastarem-se na vida sem a viverem. Não há melancolia nesta morte, há desespero de viver.

1 comentário:

Inês Lourenço disse...

Gostei muito deste livro, onde a difícil técnica do conto é amplamente conseguida, prendendo o leitor nos seus finais em aberto, como também pela mundividência que subjaz ao ficcionado, recobrindo desde a materialidade quotidiana até ao plano simbólico e da interrogação existencial.