Suponho que um dos maiores desafios colocados a quem
escreva um conto seja o de conseguir sintetizar a vida inteira num mínimo de
palavras, partindo para tal de uma situação que convide o leitor a embarcar
numa viagem sem fim. Os melhores remates deixam tudo em aberto, a "punchline" e o
“wit” são meros adereços num cenário sem muros nem fronteiras. Nisto o conto
distingue-se do fragmento e do aforismo, frase onde o pensamento se manifesta sem recurso à
acção e à personagem. E afasta-se da poesia, quando se afasta, pelo uso de uma
linguagem que encerra discursos, gestos, acções, tendencialmente circunscritos
a uma situação específica.
Se tomarmos de exemplo o conto que oferece título à
mais recente colectânea de Carlos Querido (n. 1956), a segunda depois de Insanus (Abysmo,
Julho de 2017), perceberemos melhor esta especificidade do conto. A situação é
um funeral, as personagens são os amigos do defunto, a acção é o conflito entre
os amigos e a família do defunto. Há um motivo para esse conflito. A família
pretende um funeral católico convencional, desrespeitando a última
vontade do morto. Os amigos empenham-se no cumprimento dessa vontade, a qual incluía
cremação, a leitura de um poema de Ruy Belo e subsequente libertação das cinzas
ao largo do Cabo Carvoeiro. A solução decorrente do conflito não chega sequer a
ser o aspecto mais relevante. Múltiplas seriam as opções.
O que se me afigura
bem mais relevante é o modo como o tema da morte aparece tratado neste Habeas
Corpus (Abysmo, Maio de 2019), tanto neste como nos outros contos do livro. A linguagem
jurídica que a expressão latina define não determina o âmbito de acção nestes
contos, os quais extravasam amiúde as leis da lógica e da normalidade para confrontarem
o leitor com configurações alternativas do real. Se a procura do “sentido da
vida” (vide conto “O Confronto”) se processa a partir da constatação da
finitude, não deixa de ser verdade que essa mesma busca leva as personagens a
olharem mais para o interior de si mesmas do que para fora.
A certa altura, no
conto “O Regresso a Casa”, deparamos com um final denunciador da filosofia
subjacente ao conjunto: «Um dia, cansado de aventuras, suspendeu o olhar em
redor e voltou-se para si. Tão insondáveis como o universo, só os enigmas da
alma» (p. 31). Ao cansaço colhido da vida corresponde o movimento introspectivo
que leva à doença, podendo esta ser entendida não apenas no sentido literal do
termo mas enquanto experiência da anormalidade, do desequilíbrio, do defeito, experiência do enigmático e do misterioso. A
uma percepção objectiva dos factos (vide conto “O Vidro Embaciado) preferem-se
visões alternativas, subjectivas, marcadas pela doença, consultas
psiquiátricas, sinais de estranheza, momentos de paralisia, confissões de traumas,
angústias, medos, obsessões. E assim como sonham imenso, algumas destas
personagens são também perseguidas por insónias causadores de delírios e de alucinações.
Carlos Querido oferece voz aos mortos para que os vivos possam
falar, é a voz dos mortos que faz ressoar os mistérios recalcados na intimidade
dos vivos. Não estranhemos, pois, a dupla vida da personagem no conto com o
título “Duplicação”, ou aquela que se sonha árvore, ou a outra que vê saltar do
espelho a sua dupla personalidade como quem se sente perseguido pela própria
sombra. Os retratos dos antepassados ganham vida e peso, condicionam quem
estando vivo adquire a consciência de que está à morte. No conto “O Vírus”
alguém diz: «Sinto-me pertencer a um mundo paralelo, mágico, de luzes e
combinações infinitas» (p. 71). É um simples técnico de informática quem fala,
o que nos leva a pensar que no imo da confissão desse sentimento de pertença paira
implícita uma forma de desconexão com o mundo real. Ele não se sente pertença
do mundo dito normal, o mundo dos factos objectivos, o mundo das regras, das
normas, das leis. O seu “habeas corpus” é a pertença a um mundo alternativo à
dimensão sem dúvida nem mistério da existência, é isso que o liberta. Condenado
a viver, projecta-se para fora da vida como um artista se projecta na sua
criação. Libertando-se.
Deste modo, o que estes contos têm para nos comunicar pode também resumir-se usurpando uma frase do conto “Grafitos”: «Tinham morrido
há muito, sem se aperceberem» (p. 101). E para tanto bastou arrastarem-se na
vida sem a viverem. Não há melancolia nesta morte, há desespero de viver.
1 comentário:
Gostei muito deste livro, onde a difícil técnica do conto é amplamente conseguida, prendendo o leitor nos seus finais em aberto, como também pela mundividência que subjaz ao ficcionado, recobrindo desde a materialidade quotidiana até ao plano simbólico e da interrogação existencial.
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