segunda-feira, 23 de novembro de 2009

ELOGIO DO CINISMO (8)


A lição cínica é sempre de actualidade: ensinar a nudez do rei, a ausência de uma diferença de essência, de natureza ou de substância, entre o primeiro dos cidadãos do Império e o último dos escravos da cidade ─ uma sapiência anunciadora de Robert Antelme. De modo idêntico, Diógenes, Crates e os outros querem a desenvoltura no lugar de todas as manifestações de poder: fausto, teatralidade, esplendor dos ouros e das antiguidades. Cínicos, os rebeldes que colocam o seu orgulho bem acima das prebendas oferecidas em troca da colaboração com os poderes instituídos; cínicos, ainda, os revoltados que colocam o pensamento ao serviço da insubmissão, de preferência a pô-lo à disposição das forças que desvitalizam o indivíduo; cínicos, finalmente, os resistentes que opõem o saber ao poder, à laia de contra-poder.
Os conselheiros do Príncipe, os colaboradores ─ como se diz numa palavra que em nada perdeu o seu sentido desde o período dos anos sombrios ─ os técnicos, os funcionários do pensamento que operam em comissões ou fornecem aos homens políticos do momento e aos poderosos do dia dois ou três conceitos susceptíveis, à justa, de serem compreendidos e assimilados pelos jornalistas, esses, perpetuam a miséria e a servidão, a sujeição e o sacrifício das individualidades, em proveito das máquinas sociais, das quais obtêm vantagens em espécies, em termos simbólicos, ou até em liquidez, todos eles, aliás, bem compatíveis entre si.
Onde os auxiliares do poder vigente celebram a virtude do sério, do útil e indispensável para sacramentar o poder, para fazer dele um epifenómeno proveniente do religioso e do celeste, o libertário restaura as virtudes do desvio, da ironia, do humor, do cinismo, sob a forma de modalidades subversivas da linguagem e do gestual, conceptuais e pragmáticas. O riso nietzscheano de Foucault, contra o silêncio feltrado dos palácios presidenciais; a dança de Zaratustra, em contraponto à rigidez dos ministérios, de todos os protocolos; o grotesco de Rabelais e as loucuras de Swift, à laia de resposta aos sussurros dos enxames de porteiros; a chacota de Voltaire e a qualidade de Sartre, como eco às peças douradas da armação de portas e janelas e aos brocados púrpuras; os sarcasmos da festa dos loucos e as antimissas com burros, face à pompa do Eliseu. Vinho a rodos, libações, um Diógenes que peida, onanista e canibal, uma política dionisíaca; brindes com água simples, presidentes da República desmiolados, uma política apoIoniana, eis o inventário das alternativas ancestrais.
O risco que representa o lobo não é certamente o do cão. A este último destina-se a barriguinha ética, o fim de qualquer elegância moral, a obesidade conceptual e a reflexão adiposa, a obra lançada como pasto tanto aos simples como aos necrófagos: uma libra por cada ideia ─ e ainda... ─, uma libra por cada mandato do dono, uma chuva de pregações públicas, uma ocupação dos locais mediáticos da maneira como se ocupam os lugares de lazer. No final de contas, um talento desvitalizado, um pensamento em frangalhos, suturado, e a alma vendida aos parasitas políticos alimentados pelo sangue chupado e pela inteligência escravizada.
Para os outros, os lobos, destina-se o lote concedido aos companheiros de Diógenes através dos séculos: a expulsão, o exílio, a prisão, a tortura, a privação de liberdade, a perseguição, a punição, os maus tratos, a encarceração. Prisão mamertina e células entre quatro muros, montanhas córsegas e jaulas de ferro não longe de Couesnon, fogueiras romanas e salas de tortura espanholas, exílio para a Holanda e mudanças forçadas de paradeiro na América, a Bastilha e Charenton, Jersey e Guernesey ou, hoje, privação de cobertura mediática ou de promoção social, o contrário de tudo o que, de perto ou de longe, se assemelhe ao néctar e à ambrósia dos Eliseus. A loucura de Nietzsche, a sida de Foucault, o suicídio de Deleuze, o silêncio de Blanchot, contra a paixão de alguns pelos almoços em companhia daqueles que nos governam. Os pensamentos fortes associam-se às vidas que os acompanham e os pensamentos débeis também.


Michel Onfray, in A Política do Rebelde – Tratado de Resistência e de Insubmissão, trad. Carlos Oliveira, Instituto Piaget, 1999, pp. 192-194.
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