segunda-feira, 30 de novembro de 2009

ELOGIO DO CINISMO (9)


A paixão cínica pode ser duplicada por uma vontade aristocrática. Sempre gostei que Roger Vailland, comunista, conduzisse um Jaguar MK II, tomasse heroína e que o seu compromisso, ao lado dos despojados, fosse apenas suspeito aos olhos das belas almas ainda piedosas, ou até cristãs até às entranhas, que só dão crédito aos pensamentos de esquerda no caso de estes envergarem, ridiculamente, os ouropéis caricaturais de uma pobreza composta, ostensivamente exibida a tiracolo. A culpabilidade não é uma obrigação nem um dever, pela simples razão que uma política hedonista, libertária e de esquerda, ilustra-se menos pela arte de empobrecer os ricos do que pela de enriquecer os pobres.
Longe daquilo que, numa dada época, pôde caracterizar uma esquerda dita «caviar», sobre a qual ainda se procura saber o que fazia dela uma esquerda, quando já não existem mais dúvidas sobre as razões e a existência da sua intoxicação ao beluga, um pensamento libertário, infundido por uma mística de esquerda, pode muito bem funcionar no registo artístico. Como prova, para além de Roger Vailland, as páginas soberbas escritas por Oscar Wilde, sob o título
A Alma do Homem sob o Socialismo ─ um livro de plena actualidade, após um século de existência ─ ou, mais inesperado, um almoço que aproximou, nas primeiras semanas de 1849, Baudelaire e Proudhon, numa pequena loja de pronto a comer da Rua Neuve-Vivienne. Um olhar ao sistema das contradições económicas, outro para saborear as flores do mal ou provar os paraísos artificiais, tendo o conjunto por desígnio o que Séverine chamava, no século passado, um dandismo revolucionário ─ esta mistura não deixa de me agradar.
A opção libertária, não tendo a obrigação de operar ao lado da compaixão no seu registo cristão, não me parece legítimo que para se ser credível se tenha de ser pobre ou despojado de si próprio, pois os detractores diriam, então, que o comprometimento político seria motivado por um ajuste de contas pessoal ou pelo ressentimento, no que encontrariam novos motivos para o descrédito que tanto procuram. Dandismo e pensamento libertário funcionam às mil maravilhas em todos aqueles que, longe dos imperativos do realismo socialista, em virtude do qual é necessário submeter a arte à política, postulam exactamente o inverso e esperam da arte que ela dê forma ao político, que o alimente, que lhe transmita força, vigor e energia. Nessa perspectiva, o dandismo contemporâneo do século da revolução industrial pode ler-se como reacção contra a unidimensionalidade gerada pela metamorfose do capitalismo.
Contra o igualitarismo, essa religião nociva da igualdade, o dandismo reivindica uma subjectividade radical activa, no combate contra todas as palavras de ordem do momento: culto do dinheiro e da propriedade, dogmas burgueses e mitologias de família, economia sensata dos casais e consumo da imprensa como única referência intelectual, cultural, de tudo o que constitui a tonalidade da época. Baudelàire afirma e exibe uma furiosa independência de espírito, uma animosidade particular em relação aos burgueses, venham eles de onde vierem, da esquerda ou da direita. Professa o culto do inútil e do artifício, do lazer e do gratuito, onde a maioria se esgota no útil, no rentável, no trabalho, na renda.
O dandy procura o sublime. A política libertária aspira ao mesmo tipo de objectivo: a assunção do indivíduo artista reage contra a queda dos particulares nos «bas-fonds» onde triunfam as virtudes e os valores burgueses. O poeta contra o farmacêutico, o pintor como remédio à frouxidão da vida moderna, o escritor à laia de resposta às infâmias induzidas pela industrialização e pela era da reprodução mecânica dos objectos, dos homens, das obras de arte ─ pensemos nas imprecações do poeta sobre a fotografia ─ ou das individualidades. Na época do reproduzível, todos são pensados, desejados e construídos segundo o mesmo padrão. O dandismo teoriza a reivindicação de garantias, multiplicadas pela expressão da individualidade e pela soberania das monadas.
O dandismo revolucionário, formulado por Séverine, não supõe a comunhão nalgum outro pecado venal, por vezes mortal, cometido por aqueles que estremecem não muito longe da mística de esquerda: o dever de amar o povo, a obrigação abjecta de celebrá-lo, de lhe conceder ou emprestar méritos, pois uma vista de olhos retrospectiva sobre a História deveria dissuadir a prática desse entusiasmo tão perigoso quanto nefasto, fornecedor, em cada ocasião, dos gregarismos políticos, do estalinismo ao nazismo, passando pelas fórmulas europeias de um nacional-populismo declinado nos registos italiano, espanhol, francês, grego e da Europa de Leste. Não há nada mais devoto para com o povo que as declarações de Lenine, Estaline, Hitler, Pétain, Mussolini, Franco, Le Pen e tantos outros, cuja fabulação sobre este universal das suas contas se alimenta do esquecimento e da negligência dos indivíduos, únicos princípios ou unidades operatórias em matéria de política. O dandy prima na farmacopeia que se opõe ao
homem das multidões.

Michel Onfray, in A Política do Rebelde – Tratado de Resistência e de Insubmissão, trad. Carlos Oliveira, Instituto Piaget, 1999, pp. 194-196.
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