(...) Este não é fanático da ortodoxia, nem da autocracia. Inicia o seu governo, acabando a desastrosa guerra da Crimeia com uma paz, que restabelece a neutralidade do mar Negro. A seguir limita a censura; facilita os estudos e as vagens de relações com o Ocidente; põe o problema da libertação dos servos e entra em franco regime de progressivas liberdades. A revolta da Polónia, aumentando a oposição dos que não acreditam na eficiência das suas reformas, modifica a sua política de paz e de progresso pacífico no interior, ao mesmo tempo que consegue, em política externa, a abolição da neutralidade do mar Negro. Faz-se um entendimento entre a Rússia, Alemanha e Áustria, que, em breve, irá ser modificado pelo entusiasmo eslavófilo, que leva o país a uma nova guerra com a Turquia. Esta guerra, de que a Rússia sai vitoriosa, traz a independência do Montenegro, Sérvia e Roménia e a criação da Bulgária. Mas o posterior congresso de Berlim representa para a Rússia uma derrota diplomática e aumenta o descontentamento no interior.
Como à guerra da Crimeia se seguira a libertação dos servos, é agora esta derrota diplomática tomada por muitos como pretexto para uma exaltação das rebeldias interiores. Sempre as guerras infelizes foram para a Rússia ocasião de grandes perturbações revolucionárias e tomadas como motivo para exigências de liberdades públicas. Já as reformas liberais anteriores tinham encontrado uma grande resistência da parte dos eslavófilos, chamados reaccionários, como perigosos ocidentalismos, e, da parte dos liberais, como diminutas e insignificantes. Os primeiros tinham demorado e deformado a lei da libertação dos servos; os segundos, sempre insatisfeitos, entravam no período de perturbações e atentados. Os eslavófilos impediam uma distribuição de terras, como a que muito mais tarde iniciará o ministro Stolypine, e afirmam o mir e o artel como formas especificamente russas, capazes da solução das aspirações utópicas dos socialistas ocidentais. Deste modo as terras são dadas colectivamente ao mir, que as distribuirá, por votação aprovativa de dois terços, como quiser e a quem quiser. Assim, e apesar das facilidades do apoio bancário, ficaram os servos libertos em insuficientes condições de prosperidade económica. O decreto de 1861, honra do czar libertador, abolindo a servidão, não tinha a previdência bastante para um bom desenvolvimento duma propriedade capaz de bastar às necessidades do camponês. Alexandre II reformou também a vida judicial e administrativa da Rússia, indo até à criação dos Zemstvos, assembleias de eleição para a administração dos governos e distritos.
Com a revolta da Polónia e exigências de mais liberdades públicas, o czar afirmou o absolutismo do seu poder. A esta afirmação responde logo um atentado, começando um período de terror, revelando que o niilismo russo, sob a forma do positivismo, utilitarismo e zoologismo darwinista, tinha tomado conta do melhor da juventude russa. Os homens de confiança do czar são substituídos por outros do grupo chamado reaccionário. A derrota diplomática, que afasta o czar dos seus aliados, exacerba os ânimos e o terror exalta-se em delírio cruel e inútil. Tentativa de assassinato do czar a tiro, tentativa de destruição da carruagem, que o conduz, tentativa trágica do Palácio de Inverno, destruindo por uma bomba de formidável potência a sala de jantar e matando dezenas e dezenas de soldados e criados do czar. O terror apossa-se de toda a nação e só a entrega da ordem a um general enérgico e feliz traz de novo alguma tranquilidade. Este general, Loris-Melikof, alvejado por três tiros que lhe tocam os vestidos, salta sobre o agressor, derruba-o e prende-o. É o bastante para que renasça um pouco de confiança na ordem. O czar quer fazer acompanhar o acto de coroamento de sua segunda mulher com a publicação duma carta constitucional. Assina essa carta e, contra os conselhos da guarda vai assistir à parada dominical.
Os revolucionários não tinham desarmado e a carruagem do imperador é atacada à bomba. Mortos alguns cossacos da escolta, os cavalos e um pequeno que se aproximou, o imperador corre para os feridos. O chefe da escolta pede-lhe, breve, que recolha a toda a pressa; o imperador teima na demora. Alguém pergunta-lhe: — Vossa Majestade não tem ferimentos? — «Não; nada tenho, graças a Deus» — responde o czar. Esse alguém diz num ríctus: — «Não será ainda cedo para dar graças a Deus?» E uma nova explosão esfacela o imperador, que libertou os servos. Quem era esse alguém? Kropotkine conta que um dos revolucionários ao ver o czar ferido se aproximara compassivo. Claro que este não era aquele alguém; mas um outro, um daqueles que representa a Rússia inquieta e emotiva, não governada pela vontade, mas por um amor sensível que tanto é amor como ódio. O outro, aquele alguém, quem seria? Seria um dos Possessos de Dostoiewsky e do Diabo?
Leonardo Coimbra, in A Rússia de Hoje e o Homem
de Sempre (1935). Pedro, o Grande, Catarina Primeira e Pedro II, Ana, Ivã VI & Isabel, Pedro III e Catarina II, Paulo I, Alexandre I, Nicolau I.
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