Onde o corpo político exige a abdicação da soberania individual, o libertino celebra uma política do corpo; onde triunfam, sob todas as suas tonalidades, as variações sobre o tema do contrato social, ele opõe um contrato hedonista, revogável a partir, apenas, do desejo de um dos dois elementos; onde reina o poder político, em última instância com a ajuda da razão de Estado, ele enaltece a paixão singular e individual, o capricho, a vontade de gozar, para ele e para o outro. Associações de egoístas, afinidades electivas e prática política da amizade, o libertino histórico da Trétrade ou das Academias secretas pratica o local hermético como uma metáfora: o cenáculo e o café, a taberna e o salão, o «boudoir» e o fiacre, a casa de campo e o quarto de dormir, o castelo e o pavilhão de caça, o sótão: microcosmos elevados ao estatuto de laboratórios libertários onde triunfam as virtudes partilhadas e a sociedade organizada segundo o princípio de gozar e de fazer gozar.
Estas novas possibilidades de existência fornecem modelos ─ e ainda poderão vir a produzi-los ─ para as intersubjectividades verdadeira e radicalmente hedonistas: cinismo e dandismo, libertinagem e cimento libertário, todas estas forças contribuem a um tempo para desactivar as lógicas do poder ao promover uma micro-sociedade electiva hedonista. No registo do ideal ascético, o poder funciona segundo o modelo da procissão: do mais elevado, sobre e contra a pessoa situada em baixo da pirâmide hierárquica; no do ideal hedonista, ele age por capilaridade, irrigando o conjunto e traçando, na totalidade de um grupo, os brilhos e as cintilações característicos das relações de júbilo.
Onde os outros vêem a função, a pessoa, ele quer a nudez, metafórica ou real, pois age em virtude de uma sapiêncta trágica: o saber consequente, ligado a todo o ateu radical, quanto à igualdade absoluta perante a morte. Esta sabedoria violenta das consciências na proximidade dos ossários, nos campos e nas pocilgas onde se espera a queda do cutelo da guilhotina, supõe que não se perca o seu tempo ─ enquanto se espera pelo momento do trespasse ─ em considerações nas quais as hierarquias poriam um freio aos movimentos de uma atracção apaixonada voluptuosa entre todos os membros da comunidade social, iguais perante o seu destino.
As Novas Observações sobre a Língua Francesa de 1692 precisam: «Dir-se-á de um homem de bem que nunca se sente estorvado e que é inimigo de tudo o que se chama servidão: ele é libertino». Alguns, como, por exemplo, Vanini, Fontanier ou Vallée, pagaram essa vontade libertina e libertária com a fogueira, fiéis, nesse aspecto, à necessária proximidade entre o pensamento e o perigo (mesmo que os riscos da nossa época possam parecer quase nulos, pelo menos numa França saciada e paralisada pelo egocentrismo, não longe de uma Argélia onde ainda se corta a cabeça do libertino ou o decapitam com uma faca de talho). Amigos e inimigos conhecem os mesmos trajectos, sofrem destinos semelhantes. Não há nada que deva durar mais, melhor e para toda a eternidade do que esta figura libertária construída sobre um princípio anticlerical e ateu.
Enfim, cínico, dandy e libertino, o libertário mostra-se, também, romântico, pois sabe que se comprometeu num combate de Titãs no qual tudo irá perder, excepto a honra. O desfecho não oferece a mínima dúvida: nenhum sacrifício individual bastará para inflectir o curso da História de modo definitivo e duradouro. Nada pode inverter a natureza trágica do real e a permanência das lutas violentas pelo poder. Pelo menos, com a elegância a ajudar, o libertário pode dar o seu último suspiro com a satisfação de uma tarefa cumprida até ao fim, apesar de todas as dificuldades.
Onde o revolucionário imaginava o fim da sua tarefa coincidindo com o fim da história, o libertário, convertido às necessidades do devir revolucionário do indivíduo, aceita a eternidade da sua obra e sabe da impossibilidade da História vir um dia a acabar. Nada de pacificação futura, de sociedade realizada na harmonia, de ideal da razão encarnado nos amanhãs radiosos, mas sim o eterno retorno da violência, da luta pelo exercício de uma soberania paga à custa da sujeição do outro. A vontade hedonista, em política, supõe o desejo exacerbado de uma libertação de si, mesmo do registo da agonia.
O romântico age, solitário, para alcançar o sublime, o seu ideal, evitando qualquer negação ou objectivação de outrem. Pois numa vontade de júbilo generalizada, numa economia global dos desejos e dos prazeres, e apesar do desespero, é preciso gozar e fazer gozar. Por não ser kantiano, o libertário não conta com a improvável universalização da máxima hedonista. Em compensação, no terreno do enxameamento, da capilaridade da proximidade, cada um pode esperar um reencantamento do mundo na sua esfera exclusiva, esperando o entrelaçamento dessas esferas num jogo de combinações múltiplas.
A guerra permanecerá e, com ela, o teatro de sombra e de luz, a estratégia e a táctica, a força e a potência, o mistério e a implacabilidade do que se repete: a natureza e a substância dessa energia guerreira instalada nos interstícios abertos pelos indivíduos que desdobram e desenrolam os seus destinos. O romantismo reside neste saber trágico e desesperado: nada de substancial se modificará; a única esperança, solipsista, jaz na possibilidade de uma escultura de si mesmo. Uma política hedonista desejosa de uma intersubjectividade, no mais neutro dos poderes de sujeição e no mais absoluto dos prazeres de jubilação, engendra uma verticalidade na estruturação de si mesmo, segundo o registo da moral pura.
Onde o mundo guerreiro e as violências sociais vivem de solenidade, de gravidade, de segurança, de comunidade, de brutalidade, de cientismo, de sociologismo e de contrato, o libertário propõe o ludismo, a liberdade, o indivíduo, o romantismo, o trágico e a estética generalizada. Contra o soberano que deseja o grupo, o número e a quantidade, ele realiza a sua própria soberania e autoriza uma palavra susceptível de dizer «eu» e trata de possibilitar o mesmo exercício para cada um. Neste projecto de escultura política de si próprio, a euforia, tão cara ao espírito de Marcel Duchamp, torna-se uma bomba psicológica e portadora de entusiasmo. Daí a intercessão e o devir da obra na acção.
Michel Onfray, in A Política do Rebelde – Tratado de Resistência e de Insubmissão, trad. Carlos Oliveira, Instituto Piaget, 1999, pp. 198-201. (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7) (8) (9) (10)
Estas novas possibilidades de existência fornecem modelos ─ e ainda poderão vir a produzi-los ─ para as intersubjectividades verdadeira e radicalmente hedonistas: cinismo e dandismo, libertinagem e cimento libertário, todas estas forças contribuem a um tempo para desactivar as lógicas do poder ao promover uma micro-sociedade electiva hedonista. No registo do ideal ascético, o poder funciona segundo o modelo da procissão: do mais elevado, sobre e contra a pessoa situada em baixo da pirâmide hierárquica; no do ideal hedonista, ele age por capilaridade, irrigando o conjunto e traçando, na totalidade de um grupo, os brilhos e as cintilações característicos das relações de júbilo.
Onde os outros vêem a função, a pessoa, ele quer a nudez, metafórica ou real, pois age em virtude de uma sapiêncta trágica: o saber consequente, ligado a todo o ateu radical, quanto à igualdade absoluta perante a morte. Esta sabedoria violenta das consciências na proximidade dos ossários, nos campos e nas pocilgas onde se espera a queda do cutelo da guilhotina, supõe que não se perca o seu tempo ─ enquanto se espera pelo momento do trespasse ─ em considerações nas quais as hierarquias poriam um freio aos movimentos de uma atracção apaixonada voluptuosa entre todos os membros da comunidade social, iguais perante o seu destino.
As Novas Observações sobre a Língua Francesa de 1692 precisam: «Dir-se-á de um homem de bem que nunca se sente estorvado e que é inimigo de tudo o que se chama servidão: ele é libertino». Alguns, como, por exemplo, Vanini, Fontanier ou Vallée, pagaram essa vontade libertina e libertária com a fogueira, fiéis, nesse aspecto, à necessária proximidade entre o pensamento e o perigo (mesmo que os riscos da nossa época possam parecer quase nulos, pelo menos numa França saciada e paralisada pelo egocentrismo, não longe de uma Argélia onde ainda se corta a cabeça do libertino ou o decapitam com uma faca de talho). Amigos e inimigos conhecem os mesmos trajectos, sofrem destinos semelhantes. Não há nada que deva durar mais, melhor e para toda a eternidade do que esta figura libertária construída sobre um princípio anticlerical e ateu.
Enfim, cínico, dandy e libertino, o libertário mostra-se, também, romântico, pois sabe que se comprometeu num combate de Titãs no qual tudo irá perder, excepto a honra. O desfecho não oferece a mínima dúvida: nenhum sacrifício individual bastará para inflectir o curso da História de modo definitivo e duradouro. Nada pode inverter a natureza trágica do real e a permanência das lutas violentas pelo poder. Pelo menos, com a elegância a ajudar, o libertário pode dar o seu último suspiro com a satisfação de uma tarefa cumprida até ao fim, apesar de todas as dificuldades.
Onde o revolucionário imaginava o fim da sua tarefa coincidindo com o fim da história, o libertário, convertido às necessidades do devir revolucionário do indivíduo, aceita a eternidade da sua obra e sabe da impossibilidade da História vir um dia a acabar. Nada de pacificação futura, de sociedade realizada na harmonia, de ideal da razão encarnado nos amanhãs radiosos, mas sim o eterno retorno da violência, da luta pelo exercício de uma soberania paga à custa da sujeição do outro. A vontade hedonista, em política, supõe o desejo exacerbado de uma libertação de si, mesmo do registo da agonia.
O romântico age, solitário, para alcançar o sublime, o seu ideal, evitando qualquer negação ou objectivação de outrem. Pois numa vontade de júbilo generalizada, numa economia global dos desejos e dos prazeres, e apesar do desespero, é preciso gozar e fazer gozar. Por não ser kantiano, o libertário não conta com a improvável universalização da máxima hedonista. Em compensação, no terreno do enxameamento, da capilaridade da proximidade, cada um pode esperar um reencantamento do mundo na sua esfera exclusiva, esperando o entrelaçamento dessas esferas num jogo de combinações múltiplas.
A guerra permanecerá e, com ela, o teatro de sombra e de luz, a estratégia e a táctica, a força e a potência, o mistério e a implacabilidade do que se repete: a natureza e a substância dessa energia guerreira instalada nos interstícios abertos pelos indivíduos que desdobram e desenrolam os seus destinos. O romantismo reside neste saber trágico e desesperado: nada de substancial se modificará; a única esperança, solipsista, jaz na possibilidade de uma escultura de si mesmo. Uma política hedonista desejosa de uma intersubjectividade, no mais neutro dos poderes de sujeição e no mais absoluto dos prazeres de jubilação, engendra uma verticalidade na estruturação de si mesmo, segundo o registo da moral pura.
Onde o mundo guerreiro e as violências sociais vivem de solenidade, de gravidade, de segurança, de comunidade, de brutalidade, de cientismo, de sociologismo e de contrato, o libertário propõe o ludismo, a liberdade, o indivíduo, o romantismo, o trágico e a estética generalizada. Contra o soberano que deseja o grupo, o número e a quantidade, ele realiza a sua própria soberania e autoriza uma palavra susceptível de dizer «eu» e trata de possibilitar o mesmo exercício para cada um. Neste projecto de escultura política de si próprio, a euforia, tão cara ao espírito de Marcel Duchamp, torna-se uma bomba psicológica e portadora de entusiasmo. Daí a intercessão e o devir da obra na acção.
Michel Onfray, in A Política do Rebelde – Tratado de Resistência e de Insubmissão, trad. Carlos Oliveira, Instituto Piaget, 1999, pp. 198-201. (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7) (8) (9) (10)
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