terça-feira, 29 de dezembro de 2009

ELOGIO DO CINSIMO (12)


A extensa citação de Onfray justifica-se por lhe devermos este redespertar para a lição cínica, a qual, como vimos, está longe de merecer a censura que interpretações históricas tendenciosas e enviesadas lhe impuseram. Os cínicos foram relegados para a penumbra por neles ter sido vislumbrada uma acção inconveniente à arquitectura das sociedades ideais, erguidas em modelos de submissão, escravatura, exploração, modelos que deploravam e deploram a resposta espontânea e livre das paixões, modelos castradores da liberdade e cristalizadores do pensamento. Basta lançarmos os olhos superficialmente pelo mundo em que vivemos para nos depararmos com as conquistas desses modelos de sociedades ideais: desigualdades cada vez mais profundas, assimetrias aparentemente inultrapassáveis, uma ínfima parte de indivíduos a gozar os lucros da exploração económica exercida sobre uma maioria confinada à mera sobrevivência, um mundo de ilusões e quimeras, como a do conhecimento acessível a todos, um conhecimento mentiroso e superficial, a tecnologização e mecanização dos saberes no chamado mundo civilizado a ditar uma desastrosa ausência de cultura geradora de comportamentos arrogantes, preconceituosos e hipócritas, o predomínio do ter sobre o ser, a paranóia do lucro, a guerra dos objectivos que dinamita os mais básicos direitos de quem trabalha e se transforma numa máquina de desespero e suicídios, a estereotipização do gosto e dos juízos, a disseminação de uma cegueira indolente, desapaixonada, com consequências devastadoras ao nível da solidariedade, cada vez mais subsumida numa caridadezinha que se faz passar por solidariedade em momentos de aflição próxima ou épocas natalícias de consumismo exacerbado. A ética cínica, a ética da resistência, faz mais sentido que nunca, tal é o cenário de escravos do consumismo e de endrominados do discurso publicitário que temos à nossa frente. Acenam-te com os direitos do consumidor e fazes disso uma bandeira, não percebendo que as cores dessa bandeira são as mesmas que levam ao colo o consumismo exacerbado onde se afundam os valores de uma verdadeira identidade: tu já não és um nome, és um código de barras, tu não és um homem com direitos, és um consumidor com direitos, tu não és um homem, és um consumidor, uma máquina de produzir escrava do consumo, tu produzes para poderes consumir enquanto és consumido pela máquina produtiva. A solução pode não estar na completa abnegação material e num despojamento radical, os quais se afiguram pouco viáveis num mundo em que os recursos mais básicos foram açambarcados pelo poder, num mundo em que é preciso prestar contas pela água que se bebe ou pelo terreno que se ocupa. «Cínicos, os rebeldes que colocam o seu orgulho bem acima das prebendas oferecidas em troca da colaboração com os poderes instituídos; cínicos, ainda, os revoltados que colocam o pensamento ao serviço da insubmissão, de preferência a pô-lo à disposição das forças que desvitalizam o indivíduo; cínicos, finalmente, os resistentes que opõem o saber ao poder, à laia de contra-poder.» Não colaborar, tanto quanto possível, o mais possível, com o poder, estimular a insubmissão, resistir ao canto da sereia, promover todas as formas de contra-poder contra a estigmatização dos comportamentos legitimamente livres. A defesa do próprio passa pela preocupação com o outro, com o direito que o outro tem de ser ele próprio. A questão está em defender um mundo onde os outros possam conviver consigo próprios sem necessitarem de corromper-se uns aos outros, porque o mundo actual caracteriza-se precisamente por essa táctica da corrupção que nos deixa sem voz quando nos vemos vítimas de erros por nós próprios anteriormente cometidos. Começar por dar o exemplo é um bom caminho, não sobrestimando nada que não seja vitalizador de uma ética libertária. No seu tempo, foi isso que os cínicos fizeram. Não admira que tenham sido calados, não admira que tenham sido silenciados, afastados das grandes enciclopédias, negligenciados pela história convencional que canoniza apenas o que se deixa canonizar. É isso que te espera se escolheres o caminho da resistência, contra as fábricas de epígonos em série, pela infantilização de uma humanidade demasiado séria para ser levada a sério:

Onde os auxiliares do poder vigente celebram a virtude do sério, do útil e indispensável para sacramentar o poder, para fazer dele um epifenómeno proveniente do religioso e do celeste, o libertário restaura as virtudes do desvio, da ironia, do humor, do cinismo, sob a forma de modalidades subversivas da linguagem e do gestual, conceptuais e pragmáticas. O riso nietzscheano de Foucault, contra o silêncio feltrado dos palácios presidenciais; a dança de Zaratustra, em contraponto à rigidez dos ministérios, de todos os protocolos; o grotesco de Rabelais e as loucuras de Swift, à laia de resposta aos sussurros dos enxames de porteiros; a chacota de Voltaire e a qualidade de Sartre, como eco às peças douradas da armação de portas e janelas e aos brocados púrpuras; os sarcasmos da festa dos loucos e as antimissas com burros, face à pompa do Eliseu. Vinho a rodos, libações, um Diógenes que peida, onanista e canibal, uma política dionisíaca; brindes com água simples, presidentes da República desmiolados, uma política apoloniana, eis o inventário das alternativas ancestrais.
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2 comentários:

garibaldov disse...

Mas a libertação só pode ser individual. Só se pode libertar quem decidiu sozinho que o queria fazer. Não aquele que o decidiu porque alguém lhe sugeriu. Este é para mim, o problema.

Até jesus cristo pode ter sido um cínico quando sugeriu o desapego material, a simplicidade, "olhai os lírios do campo", abandonar a ambição, " a césar o que é de césar", mas quando se reuniram pessoas para institucionalizar as ideias dele, bem ou mal interpretadas, o cinismo acaba ali.

Aquele que segue um cínico, deixa ele próprio de ser um.
Eu considero-me cínico mas não desenvolvo sequer esperanças de que alguém também o seja. Essa esperança seria o fim do meu cinismo.

Abraço

hmbf disse...

Só se pode libertar quem está preso.