quarta-feira, 31 de março de 2010

SILÊNCIO


Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.


Trad. Luís Pignatelli.







Nascido na Cidade do México a 31 de Março de 1914, Octavio Paz foi para os EUA muito novo. Seu pai era secretário de Emiliano Zapata, assassinado a 10 de Abril de 1919. De regresso ao México, o poeta estudou direito e literatura. Na Universidade conheceu Elena Delfina Garro Navarro, uma jovem bela e de modos ousados para a época. Filha de um erudito que se interessava pelo hinduísmo, Elena era coreógrafa e bailarina. Casaram em 1937, quatro anos depois da publicação do primeiro livro de Octavio Paz: Luna Silvestre. Muito pouco tempo passado sobre o casório, partiram para Espanha convidados para um Congresso Internacional de Escritores e Intelectuais Antifascistas. Por terras de Espanha, conviveram com Nicolás Guillén, Luis Cernuda, Rafael Alberti, Ernest Hemingway, Pablo Neruda, Vicente Huidobro e César Vallejo, entre outros. Estes encontros terão sido importantes para consolidar ideias políticas e ambições artísticas. Novamente no México, o casal chegou a ser detido na sequência de discussões mantidas com espanhóis apoiantes de Francisco Franco. Entre 1943 e 1945, viajaram pelos Estados Unidos, seguindo-se a Europa, onde permaneceram até 1953. A carreira diplomática permitia ao poeta estar em contacto com múltiplas culturas. Deixou-se influenciar pelo surrealismo, chateou-se com o estalinismo, trabalhou como jornalista, fundou e editou várias revistas literárias, entre as quais se destacam Taller (1938-41) e El hijo pródigo. A vida de Octavio Paz era cada vez mais a de um poeta sobretudo interessado em questões intelectuais e nos problemas da literatura, não abandonando nunca, porém, as preocupações políticas. De resto, abandonou a carreira diplomática em 1968, quando era embaixador na Índia, como forma de protesto contra o massacre de estudantes mexicanos. Mas antes desses acontecimentos, houve o divórcio de Elena Navarro ocorrido em 1959, precisamente um ano após esta ter reunido a sua obra dramática. Também dramáticos foram os tempos que se seguiram. Preocupado com a filha de ambos, Paz procurou disfarçar com inquestionável apoio as obsessões de Elena: «Yo vivo contra él, estudié contra él, hablé contra él, tuve amantes contra él, escribí contra él y defendí a los indios contra él. Escribí de política contra él, en fin, todo, todo, todo lo que soy es contra él. En la vida no tienes más que un enemigo y con eso basta. Y mi enemigo es Paz». Em 1964, Paz conheceu e casou na Índia com Marie-José Tramini. A paranóia de Elena cresceu, todas as suas intervenções iam no sentido de atingir Paz e os seus amigos intelectuais, acusando-os de conspirações junto dos movimentos estudantis. A história não terminará bem para Elena e sua filha, ambas exiladas nos EUA, na Europa, retornando ao México apenas em 1993, estando Elena já muito debilitada, para viver numa casa miserável acompanhada de 37 gatos e muitos cigarros. Após a resignação, Octavio Paz viveu com Marie-José Tramini em Paris, foi professor em Cambridge, fundou e dirigiu a revista Plural, viu a sua obra ser premiada variadíssimas vezes, contando-se entre os galardões o Prémio Nobel da Literatura. Faleceu no dia 19 de Abril de 1998, deixando vários livros de poemas e ensaios.

SANTO SUBITO

Não gosto de rótulos e desprezo etiquetas, mas por vezes o sentido de orientação obriga-me a resvalar numa certa sinalética histórica. No mundo das poesias, poucos conceitos ou classificações me provocam mais desdém do que esse dos novíssimos. É um conceito vazio e palerma cuja sustentabilidade se deduz em oposição ao conceito de velhíssimos. Novíssimos, pois então, serão os poetas muito novos. Não necessariamente de idade, mas de livros publicados. Novíssimos serão aqueles que se aprontam para o baptismo pelo santo reconhecimento dos velhíssimos. Mais facilmente acreditaria na poesia se cada poema valesse por si só, sem idade e sem nome. Tope-se no caso Miguel-Manso. Duas colectâneas pagaram-lhe a portagem: Contra a Manhã Burra (Maio de 2008), Quando Escreve Descalça-se (Trama, Novembro de 2008). A crítica dita especializada, cozinheiros de ínfimos estrelatos e considerações baptismais, viu na sua poesia uma aragem renovadora do versejar que por terras lusas se vai praticando. Estranha descoberta, sobretudo para aqueles que, tendo em conta o desfile de prosas elogiosas distribuídas à la carte, estavam convencidos de que a poesia portuguesa não carecia de qualquer renovação.

Com tanto poeta de categoria, com tanta poesia de excelência, com tanto livro publicado para meia dúzia de leitores, o que veio então a voz de Miguel-Manso acrescentar ao enfatuado reinado da poesia nacional? Nada, digo eu. E ainda bem. Porque a única coisa que há nos “carimbos de Gent” é uma voz a fazer-se carimbar, sem parangonas, no gozo de uma escrita que tem sabido alhear-se da seriedade com que os fundamentalistas do poético falam destas coisas. De agora para trás, podíamos ir de Miguel-Manso a Nuno Moura, deste a Adília, desta a Assis Pacheco e por aí fora até O’Neill, um certo Cesariny, etc. & tal. Sem cintos de bombas atados aos versos, o que estes entre outros “celebráveis” poetas nos ofereceram/oferecem foi/é o teatro da vida sem o idealismo formal daqueles que pretendem fazer da sua voz a voz de todos nós. Sendo a poesia uma das mais vetustas formas de expressão, os seis conjuntos de textos agora coligidos por Miguel-Manso vêm relembrar o papel e o lugar do texto poético não só no mundo em que se inscreve, mas também na vida que o imprime. E a advertência não deixa margem para dúvidas: «se está a pensar, eventual leitor, acompanhar-me / mesmo que de modo fortuito, neste escusado exercício / saiba que nunca estive tão perdido como agora // duvide de tudo o que lhe parecer escorreito / não se deixe enganar sequer pela imprecisa / citação dos clássicos» (p. 105).

Em nenhum dos três livros até agora publicados por Miguel-Manso a poesia e a sua sacrossanta natureza se transforma tanto em tema como neste. Com uma ironia por vezes cáustica, os poemas deste livro jogam com a sua própria condição, recuperam o riso perdido na mórbida seriedade dos vates impregnados de importância. Torna-se isso evidente logo ao primeiro poema: «A poesia, tipo, / não precisa de, bom, / não é exactamente uma canção, uma praça ou um parque no Outono» (p. 13). Do que precisa a poesia, não sabemos nem estamos preocupados em saber. Somos levados a crer que estes textos de Miguel-Manso a que chamamos poemas precisam de referências, precisam de transformar em personagens nomes cujo peso histórico se perde na leveza dos versos, precisam de um olhar apaixonado que vislumbra na beleza das coisas concretas uma exigência de conservação que nenhum poema parece merecer, precisam de resgatar essa beleza, precisam de a trazer para dentro de si quase como de água precisa um homem, precisam de capturar dos lugares os seus ínfimos pormenores, precisam de ruas, de andar à deriva pelas ruas, precisam de um certo cheiro a hortelã nas manhãs húmidas da província, nas tardes quentes da cidade, precisam de uma grande e ingénua lição, precisam de si próprios porque nem disso precisam.

Não nos admiremos, pois, da diversidade de lugares que dão vida a estes poemas, das situações (de)formadas pelo olhar interveniente do poeta, não nos admiremos da música ligeira, a espaços improvisada, que embala as palavras numa dança imprevisível, mesmo quando certos remates nos soam fáceis e a toada aforística ameaça o verso. Pessoalmente, não concebo um livro de poesia de outra forma. Irritam-me as cabeças penteadas e não espero da poesia senão uma forte e irregular ventania. A bem dizer, estou-me nas tintas para a arrumação dos livros quando dentro deles há poemas cujo desalinho valer-me-á sempre mais que um qualquer arranjo formal com pretensões “crítico-literárias”. E neste livro há muitos desses poemas, dos quais o melhor de todos é, sem dúvida, um poema intitulado Na Morte da Avó. De um livro de poesia não posso esperar o mesmo que se espera da Constituição da República. Posso apenas esperar que insista «no escusado, mal pago, fantasioso / exercício da beleza» (p. 42). Se for isso que ele tem para me oferecer, e foi isso que Santo Subito me ofereceu, resta-me agradecer humildemente ao seu autor.

Escrito para o Rascunho.

sexta-feira, 26 de março de 2010

O LAMENTO DE ZIZI


Estou apaixonado pela doença do riso
far-me-ia muito bem se a tivesse –
usei as esplêndidas cabaias do Sudão,
pus os magnificentes halivas de Boudodin Bros.,
beijei as Fátimas cantantes do chulo de Adém,
escrevi gloriosos salmos no café Hakhaliba,
mas nunca tive a doença do riso,
então para que sirvo eu?




O comerciante gordo oferece-me ópio, kief, haxixe,
até suco de camelo,
tudo é insatisfatório –
Oh noite amarga e terrível! tu de novo! Terei ainda
que tirar os meus dentes irreais
despir o meu irrisível eu
pôr a dormir esta cabeça melancólica?
Não sou nada sem a doença do riso.




O meu pai apanhou-a, o meu avô também;
certamente o Tio Fez há-de apanhá-la, mas eu, eu
a quem faria tão bem,
apanhá-la-ei alguma vez?


Tradução de Manuel de Seabra.



Filho de emigrantes italianos nos EUA, Nunzio Corso, verdadeiro nome do poeta Gregory Corso, nasceu a 26 de Março de 1930 no St. Vincent’s hospital, também conhecido por hospital dos poetas após Dylan Thomas aí ter falecido. Abandonado pela mãe com apenas um mês de vida, ficou aos cuidados do pai, Gary Corso, até este o ter atirado para casas de acolhimento e orfanatos. Só voltou a lembrar-se do filho para evitar o destacamento militar durante a Segunda Grande Guerra. Até lá, a criança foi educada por instituições cristãs. Depois, foi criado nas ruas. Dormia no Metro, nos sótãos dos prédios de Little Italy, enquanto continuava a frequentar a escola católica e trabalhava como moço de recados dos comerciantes locais. Aos 13 anos, roubou uma torradeira para poder ir ao cinema. Acabou detido ao lado de criminosos que, definitivamente, não estavam encarcerados por terem roubado torradeiras. Foi a primeira de várias experiências prisionais, que o levaram a ser internado no Bellevue Hospital Center e o colocaram em contacto com os mafiosos italianos que pululavam nas prisões norte-americanas. Aproveitou a experiência prisional para começar a ler livros e a escrever poesia, estudou os clássicos gregos e romanos, devorou enciclopédias, dicionários, todo o tipo de livros. Em 1949, saiu da prisão. Trabalhava para a Mafia de dia e escrevia poemas à noite. Conheceu Allen Ginsberg num bar gay, o Pony Stable Bar e ficaram, como dizê-lo, amigos para sempre. Ginsberg apresentou-o à restante rapaziada. Em 1952, estava a trabalhar para o Los Angeles Examiner. Também trabalhou como marinheiro mercante e frequentou esporadicamente a Harvard University, onde alguns amigos terão contribuído para a publicação do seu primeiro livro de poemas: The Vestal Lady and Other Poems (1955). Pouco tempo depois, encontramo-lo novamente na companhia Ginsberg and friends. Acompanhou Ginsberg e Orlovsky numa visita a Burroughs, que vivia então em Marrocos. No n.º 9 da Rue Gît-le-Cœur, situada no Quartier latin de Paris, estava aquele que ficou para a história como o Beat Hotel. Aí se reuniram «vigaristas, ladrões & assassinos», escrevendo poemas, compondo canções, desenhando, pintando e fazendo coisas várias que uma réstia de pudor nos impede de revelar. Corso regressará a Nova Iorque em 1958, ano em que o jornalista Herbert Eugene Caen começa a falar de uma geração beatnik. Gregory Corso acabara de publicar Gasoline na City Lights de Lawrence Ferlinghetti. O poeta-vadio não morrerá de encantos pelo termo, mas nunca se distanciou o suficiente da “cunhagem” para que os louros não fossem recebidos. Em 1963, casou com Sally November, de quem teve uma filha. Divorciaram-se e Gregory voltou a casar, desta feita com Belle Carpenter, em 1968, de quem teve um filho e uma filha. Novamente divorciado, juntou-se pela terceira e derradeira vez a Jocelyn Stern, de quem teve um filho. Os anos finais foram de reconhecimento público e divulgação da actividade Beat, mas também de reencontro com as suas origens. O abandono materno era um facto que carecia de explicação. Em tempos, o pai de Corso dissera-lhe que a mãe regressara a Itália, que morrera, que era prostituta. Corso veio a descobrir que, afinal, ela estava viva, residia em Trenton, e fugira de casa depois de o marido a ter violado e espancado quase até à morte. Durou pouco tempo a reunião familiar. Corso descobriu um cancro na próstata e morreu a 17 de Janeiro de 2001. Como era seu desejo, depositaram-lhe os restos mortais perto da campa de Percy Bysshe Shelley, em Roma.

quinta-feira, 25 de março de 2010

O GRITO DA PREGUIÇA

Depois de ter surpreendido meio mundo com Firmin, um livro sobre uma ratazana que me conseguiu levar a ler Ford Madox Ford, Sam Savage (n. 9 de Novembro de 1940) arrisca-se a surpreender outro meio mundo com O Grito da Preguiça (Planeta, Fevereiro de 2010). Diferentes na forma e substancialmente distantes no argumento, os dois livros não deixam de se aproximar no tom ou, se preferirem, num estilo que nos demove de quaisquer comparações inúteis. Entre o nome do autor e o estilo praticado, eis uma evidente coincidência. O humor de Sam Savage é selvagem, mas não no sentido moral do termo. Não é um humor cruel nem bárbaro, embora seja mordaz quanto baste para nos levar a acreditar que existe na falsa ingenuidade das suas personagens uma dificilmente decifrável subtileza do olhar que o autor lança sobre o mundo. É um humor primitivo, naquele contexto em que podemos chamar primitivas a todas as coisas espantosas. De um modo menos dúbio, direi que é um humor que não se deixa domesticar por quaisquer preconceitos ideológicos, de classe, políticos ou académicos. Já o tinha sentido ao acompanhar Firmin nas suas deambulações pelos destroços do passado e voltei agora a senti-lo ao bisbilhotar a correspondência do malogrado Andrew Whittaker.

Porque é disso que se trata, de quatro meses de correspondência e apontamentos reunidos, onde podemos encontrar um pouco de tudo. E esse pouco de tudo é o que dá forma à vida de Whittaker, um quarentão abandonado pela mulher, que vive de alugueres e sobrevive de um sonho: a edição da pequena revista literária Sabão ─ Revista de Artes. A narrativa constrói-se, portanto, num único sentido: o da epistolografia enviada pelo personagem central a outras personagens cuja presença o leitor se vê forçado a imaginar. As cartas de Andrew Whittaker à ex-mulher, correspondência meramente comercial, listagens de compras, recados deixados aos inquilinos, rascunhos e manuscritos, projectos para um romance, respostas a potenciais colaboradores da revista, solicitações a antigos colaboradores, entre outros, são o material que nos permite montar quatro meses na vida de um homem em queda livre. De notar que só temos acesso à correspondência desse homem, pelo que os seus supostos interlocutores cumprem papéis meramente referenciais. Mais importante que as perspectivas dos intervenientes nas diversificadas situações, as quais são sempre sugeridas pelo olhar de um homem falido, é a interpretação que Andrew Whittaker vai fazendo da sua própria existência.

E o que Andrew Whittaker está a viver é o fim de um sonho. De resto, como já Firmin havia vivido o fim da livraria Pembroke Books. Esta experiência da ruína, abordada num estilo tragicómico que nos desarma a todo o momento, tanto pode ser entendida como um retrato hilariante das inconfortáveis ambições de um escritor marginal, como um espelho da decadência do mundo, um espelho que imprime nos homens o desfazer das ilusões. O que fica da cera derramada é a história de um sobrevivente, um tipo em permanente estado de desenrascanço, jogando a anca sem jeito porque, diga-se de passagem, já não está lá muito saudável dos costados. «Tenho roubado horas infinitas à minha própria escrita para andar de boné estendido de um lado para o outro, à cata de subvenções públicas e privadas» (p. 13), confessa Andrew Whittaker ao escritor Marcus Quiller, um «antigo parceiro» que ganhou fama enquanto escritor. Andrew vem agora solicitar-lhe colaboração num festival que está a organizar. Adivinhamos a resposta que terá obtido numa outra carta, enviada a um outro «antigo parceiro». O mesmo Marcus Quiller deixa de ser objecto dos maiores elogios para passar a ser tratado por «bufão», «um vendedor de banha da cobra vistoso» (p. 34).

Penso que será um erro interpretar os esquemas do malogrado editor à luz da eterna intriga e dos jogos de bastidores que dão cor ao mundo literário, no que ele possa ter de ínfima réplica de outros mundos, tão ou mais sórdidos que o das letras (conforme os pontos de vista e o grau de interesse de cada um). Também me parece errado olhar para a história de Andrew Whittaker como quem olha para um homem desistente. Há que distinguir o lado conformado e sempre ambivalente da desistência com a dimensão positiva da desilusão. O desespero de Whittaker é o dos homens desiludidos, ou porque se convenceram de que eram o que não são, ou porque se vêem impedidos de cumprir a sua própria existência, ou porque, pura e simplesmente, abriram os olhos e repararam que à sua volta pouco mais resta do que vertigem. Entre não poder fazer nada e ser vencido pela impotência, a morte ou a indiferença? Talvez fechar-se numa misantropa solidão, talvez fechar-se ao mundo negando as fórmulas da fenomenologia. Ou simplesmente talvez partir: «Está tudo acabado. Junto envio a carta que vou enviar a toda a gente. Devia ter feito isto há anos. Sei isso bem, mas não adianta. Sinto-me vazio, oco e esventrado. Olho para dentro de mim e é como espreitar para dentro de uma cisterna seca. / Vendo bem, sei que o romance está quase terminado. O que desejo realmente é que as pessoas o leiam e digam: «Que vida trágica!» ─ e desatem a rir» (p. 179). Ah, ah, ah, ah, ahh, aah, ahahhh ahah ah, ah…

Escrito para o Rascunho.

quarta-feira, 24 de março de 2010

AGRADECIDOS À TIA FRANCESA


Lawrence Ferlinghetti nasceu em Yonkers, New York, a 24 de Março de 1919. Filho de Clemence Albertine Mendes-Monsanto, francesa descendente da comunidade sefardita portuguesa, e de Carlo Ferlinghetti, italiano emigrado nos states, nunca chegou a conhecer o pai. Transtornada com a perda do marido, Clemence foi internada pouco tempo depois de ter dado à luz. A criança ficou entregue a uma tia francesa, mulher de Ludovico Monsanto, tio de Clemence e professor de espanhol na U.S. Naval Academy. Ferlinghetti acabou por viver a infância em Estrasburgo, aprendendo a falar francês ainda antes do inglês. O regresso aos EUA deu-se quando tinha aproximadamente cinco anos de idade. Passou por um orfanato até ter sido como que adoptado pelos patrões da tia francesa. Fez os primeiros estudos em várias escolas e ingressou na University of North Carolina, onde se formou em jornalismo. Os primeiros textos começaram a ser publicados no início da década de 1940, ainda assinados como Lawrence Ferling. Na verdade, até 1942 o poeta desconheceu o seu verdadeiro apelido. Só nesse ano, por culpa de um certificado que teve de entregar na US Navy, é que ficou a conhecer o seu verdadeiro nome. A Segunda Grande Guerra obrigou-o a embarcar, revelou-lhe o lado abjecto dos conflitos armados, transformou-o num pacifista inveterado depois de uma visita às ruínas de Nagasaki. Finda a Guerra, trabalhou na Time, voltou a estudar na Columbia University, formou-se em Literatura Inglesa, partiu para Paris, onde se doutorou no ano de 1950. Regressou às terras americanas no ano seguinte, casando-se com Selden Kirby-Smith e fixando-se em São Francisco. Os anos de São Francisco serão determinantes para o seu percurso literário: dá aulas de francês, pinta, escreve crítica de arte, funda, com Peter D. Martin, a City Lights Bookstore, depois de ter fundado a revista City Lights, traduz Jacques Prévert e dá início à publicação das Pocket Poets Series com um livro da sua autoria: Pictures of the Gone World. Seguiram-se, entre outros, livros de Kenneth Patchen, Allen Ginsberg, Robert Duncan, William Carlos Williams, Gregory Corso… A revolução estava em marcha. Howl and Other Poems, o quarto volume da colecção, levou Ferlinghetti à barra dos tribunais. Como é de todos sabido, nada há de melhor para um livro do que tornar-se caso de polícia. A primeira edição de 1500 cópias esgotou rapidamente. No termo do julgamento, o “livro obsceno” já ia com mais de 10.000 cópias vendidas. Eram os gloriosos anos da Beat Generation, das leituras públicas, dos escândalos, das performances ao som de jazz. No entanto, Lawrence Ferlinghetti recusou sempre a associação ao movimento Beat. Dizia-se boémio, veterano de guerra, pai de filhos e proprietário de uma livraria, tudo marcas dificilmente conciliáveis com a deriva de uma geração que fazia da rua e da estrada a sua bandeira. A verdade é que City Lights transformou-se numa espécie de porto onde atracavam os marinheiros do movimento: de Ginsberg a Kerouac, de Diane diPrima a Gary Snyder, de Gregory Corso a Burroughs, entre tantos outros. Talvez Lawrence Ferlinghetti estivesse mais próximo de um certo anarquismo libertário, com uma postura crítica alicerçada em experiências pessoais que advinham do percurso militar e de todo um historial de vida pouco simpático. O seu interesse seria mais o de libertar a poesia das Academias do que fundamentar um qualquer movimento sociopolítico com metodologias de intervenção artística. A Coney Island of the Mind (1958) é o mais popular dos seus livros e um dos livros de poesia mais vendidos de sempre nos EUA. Poeta, editor, crítico de arte, pintor, Lawrence Ferlinghetti continuou a publicar os seus e de outros livros, viajou imenso, agitou as águas, soube intervir quando o mundo esperava dos poetas algo mais do que livros cheios de poemas confortavelmente escritos na secretária lá de casa. Uma vida admirável que tem sido justamente premiada.

terça-feira, 23 de março de 2010

HOMEM PERFUMADO 0.2

Vou aprender línguas estrangeiras
para ver se ganho boas maneiras.
Já posso montar o jumento:
inscrevi-me no doutoramento.
Levarei os meus restos mortais
às primeiras páginas dos jornais.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O PÉQUE

Camarada Van Zeller, afinal isto de estar doente tem as suas vantagens. Uma visita da mãezinha deixou-me mais confortável até ao final do mês. Além de uma caixa com pastéis de nata e pampilhos, que rapei num fechar de olhos, ficou-se-me a carteira apetrechada. Deu para encher o depósito, recuperar o investimento na medicamentação e na consulta. Até deu para comprar o jornal. E, pasme-se, para lê-lo. Fiquei com pena do meu médico, que me confessou durante a consulta não ter sequer tempo para ler o jornal. Diz que os compra e não os lê. Uma vida de mouro a pedir reforma antecipada. Ele disse-me que achava que eu estava a chocar uma depressão. Eu respondi-lhe que o que me deprimia naquele momento era estar ali a ouvir o óbvio e ainda ter de pagar 40€. A depressão está mais que chocada, ó doutor. Então o que lhe corre mal, perguntou-me ele. A mim, especialmente, nada. Na verdade é isso que me deprime. Corre-me tudo muito normalmente, um tédio, uma chatice, uma insuportável rotina. Eu queria ser como você, disse-lhe, não ter tempo para ler jornais nem para aproveitar as promoções das livrarias. Por exemplo, esses péques maravilhosos: leve dois pelo preço de um. Basicamente, o oposto do outro péque: pague três, não leve nenhum. E isto deprime-me. Camarada Van Zeller, cada vez me convenço mais de que você tem o dom da razão. Afinal, há que começar por cortar no salário mínimo. Eu ainda pensei que você estivesse a referir-se ao salário mínimo dos gestores públicos, dos penedos e dos soares. Mas estava enganado. E bem. Você tem toda a razão. Devemos começar a cortar no salário mínimo dos desempregados. Essa gente é o cancro da nação. Não fazem nenhum e ainda lhes pagam. O desgraçado do meu médico farta-se de trabalhar e pagam-lhe com isto: nem tempo tem para ler jornais. Eu farto-me de ver esses desempregados lambões nas mesas dos cafés, ali o dia todo a folhearem jornais. E ainda se dão ao luxo de os sublinhar. E fazem recortes. E gastam dinheiro em telefonemas para responderem a anúncios só pelo prazer de estarem ali o dia todo à conversa. Cambada de gosmas. É isto que me deprime, ó doutor. Anda um gajo a trabalhar o dia inteiro para sustentar estes péques, anda um homem a fazer sacrifícios para sustentar malta desta. Não pode ser. Premeie-se quem trabalha, os penedos e afins, gente rija como a pedra. Sacrifique-se quem é mole, os desempregados e os privilegiados do salário mínimo nacional. Agora toca a fazer filhos. Sem mais, espero que não me leve a mal o tom informal. Se o trato por camarada é apenas por sentir pela sua pessoa a mais pura estima e consideração.

DIZ QUE GOSTAVA DE HORTICULTURA



Michael Hamburger nasceu a 22 de Março de 1924, em Berlim, no seio de uma família judaica burguesa. O pai era um pediatra com inclinações melómanas que incutiu nos filhos um forte interesse pelas temáticas culturais. A mãe era filha de um importante banqueiro. Um dos amigos de infância do poeta foi Lucien Freud. O alarme nazi levou a família a emigrar para Edimburgo, em 1933. Alteradas as condições económicas, Michael ainda pôde estudar no George Watson’s College, transferindo-se posteriormente para Westminster. Não sendo propriamente um menino de coro, escolheu como desporto favorito, além da poesia, o boxe. Dizem que se vingava no ringue dos alemães ricaços que frequentavam o colégio. Em 1941, devido à guerra, os estudos prosseguiram suportados por uma bolsa em Oxford. Foi aí que o jovem poeta/pugilista conheceu outros desportistas de renome, entre eles Dylan Thomas e Philip Larkin. O convívio deu-lhe punho. Juntamente às traduções que ia fazendo dos poemas de Hölderlin, o poeta submetia os seus próprios poemas à apreciação do mestre Eliot. A vida não estava para poesias. Hamburger cumpriu os seus serviços militares no Queen's Own Royal West Kent Regiment, andou por Yorkshire e foi colocado em vários postos britânicos. Acumulou com a itinerância militar traduções de Baudelaire, as quais não terão sido boa influência. Frustrado, objecto de encenações pouco estimulantes, resolveu festejar o fim da Guerra com uma garrafa de brandy que o deixou em coma durante vários dias. A recuperação levou-o até Aleister Crowley, com quem pretendia discutir as traduções de Baudelaire. Mas o nosso poeta acabou colocado em Graz, a ensinar inglês e alemão às criancinhas. Traduziu os escritos de Beethoven e, em 1950, conseguiu publicar a sua primeira colectânea de poemas: Flowering Cactus. Dois anos depois, colocaram-no como leitor na University College London. Pelo meio, ainda arranjou tempo para casar com Anne Ellen File, a actriz e poeta Anne Beresford. A partir daqui, a vida foi ocupada com traduções de Brecht, Grass, Baudelaire, Celan, Rilke, Goethe, WG Sebald (que o meteu num dos seus livros, Os Anéis de Saturno), entre tantos outros. Escreveu mais de vinte volumes de poesia, foi professor em várias universidades norte-americanas, escreveu um curioso ensaio intitulado The Truth of Poetry (1970), onde alertava tanto para os perigos das leituras de poemas levadas a cabo pelos Beats como para os jogos obscurantistas da poesia concreta. Escreveu ainda alguns livros de memórias e crítica literária, traduziu imenso, foi-lhe atribuído um OBE (Order of the British Empire) em 1992, morreu a 7 de Junho de 2007 na sua casa em Suffolk:


PARA UM ÁLBUM DE FAMÍLIA

Quatro cabeças à luz de um candeeiro
E todas curvadas em peculiar obscuridade,
Lendo, desenhando, sós.
Uma câmara tê-las-ia aprisionado
Difusas na penumbra morna da sala,
E tê-las-ia deixado, recusando contar
O tempo até que o candeeiro se fundisse,
O cabelo se pusesse em pé, se cortasse, pintasse
ou ondulasse.

Nem sequer as posso descrever, só apanhei
Um clarão que devastou
As paredes da nossa sala na penumbra;
Ou o negativo ─ uma chapa preta
Aberta à luz tão branca que feria o olhar.

Deixai esta página em branco.
Não gostaríeis nem acreditaríeis
Na foto que nenhuma lente poderia tirar:

Atado aos meus ossos como raízes
Nas vossas cadeiras voáveis, voáveis.


Michael Hamburger, trad. por Manuel de Seabra, in Antologia da Poesia Britânica Contemporânea, Livros Horizonte, Junho de 1982, p. 16. Na imagem: Anne Beresford, Rita Dove, Michael Hamburger e Fred Viebahn.

domingo, 21 de março de 2010

A TERRA SANTA

Conheci Jericó,
também eu tive a minha Palestina,
os muros do manicómio
eram as muralhas de Jericó
e um poço de água infecta
baptizou-nos a todos.
Lá dentro éramos judeus
e os Fariseus ficavam no alto
e, perdido na multidão,
estava também o Messias:
um louco que gritava aos céus
todo o seu amor por Deus.

Todos nós, rebanho de ascetas
éramos como pássaros
e de vez em quando uma rede
obscura aprisionava-nos
mas íamos a caminho da colheita,
a colheita do nosso Senhor
e Cristo o Salvador.

Fomos lavados e sepultados,
cheirávamos a incenso.
E depois, quando amávamos
davam-nos choques eléctricos
porque, diziam, um louco
não pode amar ninguém.

Mas um dia de dentro do sepulcro
também eu me levantei
e também eu como Jesus
tive a minha ressurreição,
mas não subi aos céus
desci ao inferno
de onde revejo estupefacta
as muralhas da antiga Jericó.

Trad. Clara Rowland.


Alda Merini nasceu em Milão no dia 21 de Março de 1931. Em 1950, Giacinto Spagnoletti publica dois textos da autora na Antologia da Poesia Italiana 1909-1949, apresentando-a como «uma jovem que não nasceu em nenhum terreno de cultura, nunca frequentou ambientes literários, leu até agora poucos e nem sempre bons livros e ignora, por exemplo, a Divina Comédia. Leva uma vida de rapariga pobre, confiante apenas nas grandes verdades que a sua alma descobriu». Como diria a minha avó, benza-a Deus. Merini começa a frequentar a casa de Spagnoletti no mesmo ano em que se manifestam os primeiros sintomas de doença psiquiátrica. É internada numa clínica, pronunciando uma vida devastada por sucessivos internamentos, períodos de lucidez acossados pela demência, o “inferno do manicómio”. Casa em 1953, ano da sua primeira recolha poética publicada: La presenza di Orfeo. Em 1955 nasce-lhe a primeira filha. Publica quatro livros entre 1953 e 1961, seguindo-se um silêncio poético de quase vinte anos passado mormente no manicómio Paolo Pini. Volta a sentir a experiência da maternidade por mais três vezes. O regresso à publicação acontece em 1980, com Destinati a morire, mas será com La Terra Santa (1984) que a sua voz mais se fará ouvir. Desde então, a poesia de Alda Merini mereceu várias distinções, juntando-se à vasta produção poética alguns volumes em prosa. É hoje considerada uma das vozes mais fortes da poesia contemporânea, autora de uma poesia do gueto, violenta, mas depurada, com uma forte ligação às emoções e sem outra escola que não a da sua própria experiência. Vive e morre e ressuscita e volta a morrer e volta a renascer na cidade onde nasceu.

sábado, 20 de março de 2010

O PALHAÇO DE TUBINGA


Só agora compreendo o homem, agora que estou longe dele e vivo na Solidão!


Dez anos a escrever poemas. 36 anos de loucura. Um amor impossível. Uma vida desventurada. Nascido nas margens do Neckar, a 20 de Março de 1770, Hölderlin perdeu o pai com apenas dois anos. Johanna Christina Hölderlin, a mãe do poeta, casou pouco depois com o presidente do município de Nürtingen. Enfermeira mas malograda nos amores, Johanna perdeu o seu segundo marido contava o filho apenas nove primaveras. Órfão ao quadrado, Hölderlin foi encaminhado para a carreira de teólogo. Quando se nasce torto, nem Deus nos endireita. Andou pelos seminários de Denkendorf e Maulbronn, passando depois para o Stift de Tubinga, onde travou amizade com os jovens Hegel e Schelling. Por esta altura, já escrevia poemas de velada admiração pela Revolução Francesa. Feito o exame de teologia, separou-se dos comparsas e seguiu o rumo natural de um jovem oriundo de famílias pouco abastadas: tornou-se «preceptor de meninos de famílias ricas, espécie de criado de melhor qualidade». Estamos em 1793, em casa de Charlotte von Kalb, grande amiga de Friedrich von Schiller. Estamos em Iena, convivendo com Schiller e Fichte. Estamos em Weimar, de visita a Herder. E estamos com Goethe. Na revista de Schiller, Hölderlin publicou os seus primeiros textos, um fragmento do Hyperion e o poema Destino. O convívio com o génio dos supracitados, sobretudo com Schiller, deixou-o ambivalente: «O Sr. Excita-me de mais quando estou ao pé de si, (…) estou por vezes em luta secreta com o seu génio para salvar dele a minha liberdade». A situação tornou-se incomportável e Hölderlin fugiu literalmente de Iena para o colo materno, instalando-se posteriormente em casa do banqueiro Jakob Gontard, em Francoforte-sobre-o-Meno. Novamente afundado na carreira de preceptor, isolou-se na poesia:

OS POETAS HIPÓCRITAS

Frios hipócritas, não faleis dos deuses!
Vós sois tão razoáveis! não acreditais em Hélios,
Nem no Tonante e no Deus do Mar;
A Terra está morta, quem quer agradecer-lhe? ─

Confiança, Deuses! pois ornais a canção,
Inda que dos vossos nomes a alma já se foi,
E quando é precisa uma grande palavra,
Mãe Natureza! é em ti que se pensa.


E deu-se o caso. Hölderlin perdeu-se de amores por Susette Gontard, mulher do patrão e mãe dos seus educandos. Diotima, assim lhe chamava, foi o tema de muitos dos seus poemas. Do amor platónico saíram-lhe odes, elegias, extensos poemas em verso longo e uma enorme depressão amainada por cartas à amante e breves encontros secretos. Em 1798, o poeta deixou Francoforte, resistiu às preces da mãe para que voltasse à vida eclesiástica, foi para Homburg vor der Höhe, onde trabalhou uma inacabada tragédia sobre a morte de Empédocles e continuou a escrever poemas:

Ouvisse eu agora os que me avisavam, de mim sorririam e pensariam:
«Por nos recear, mais cedo este louco nas mãos nos caiu.»
E não considerariam isso um lucro…

Cantai, ó cantai-me, terríficos Deuses Fatais, a canção
Profetizando desgraça, sempre de novo ao ouvido.
Sou vosso por fim, bem o sei, mas quero antes disso
Pertencer a mim mesmo e conquistar vida e glória.


Falhado o projecto de uma revista em Homburgo, partiu para Nürtingen, Estugarda, Hauptwyl na Suíça, Bordéus… Escreveu a Schiller cartas sem resposta e partiu, partiu, partiu. Susette Gontard morre. Ninguém sabe onde pára o poeta. Apareceu novamente na «pátria, feito um farrapo irreconhecível, depois de ter atravessado a pé a França de fronteira a fronteira». Schelling encontrou-o em estado nojento e recomendou-o a Hegel, Sinclair arranjou-lhe um lugar de bibliotecário, até que, em 1806, «uma vez que a medicina não dá esperanças, entrega-o aos cuidados de um mestre marceneiro de Tubinga, Zimmer de nome, em casa de quem fica vivendo até ao fim. É o gáudio dos estudantes e dos garotos de Tubinga que se divertem a enfurecê-lo». Hölderlin continuou a escrever versos que assinava com nomes estranhos, mostrava indiferença perante as publicações dos seus poemas, era amiúde visitado pelo fantasma de Diotima, «passa nas trevas da loucura mais de metade da sua longa vida». Morreu a 7 de Junho de 1843.

Fonte: Poemas, de Hölderlin, trad. Paulo Quintela, Relógio d’Água, 1991.

MC SNAKE

A indignação perante o que aconteceu ao cubano Orlando Zapata Tamayo, de que partilho por ser contra todo o tipo de determinismo político, faz-nos também pensar na hipocrisia com que o mundo ocidental censura estas situações. Este mesmo mundo, autoproclamado de civilizado, por oposição, certamente, a um mundo incivilizado que eu continuo a ter dificuldades em reconhecer nos mapas geopolíticos cá de casa, arroga-se no direito de condenar os inimigos do capitalismo ao mesmo tempo que denota uma estranha complacência para com variadíssimos atentados aos direitos humanos perpetrados por aqueles que se julgam donos da ética e da moral. Do Sunday, Bloody Sunday que os U2 registaram numa canção às imagens de Abu Ghraib, da evangelização aos casos de pedofilia, passando pela Inquisição que mancha o historial criminoso da Igreja Católica Apostólica Romana, da máquina de morte que os alemães alimentaram durante a Segunda Grande Guerra às limpezas étnicas nos Balcãs, da escravatura globalizada ao colonialismo no Médio Oriente, da brutalidade policial repetidamente exercida sobre os manifestantes do chamado contrapoder a variadíssimos casos de censura, coerção, pressão, limitação política, económica e social exercidos sobre aqueles que defendem o direito a pensar e agir livremente, o que não falta é exemplos de um terror que abala a legitimidade dos profetas da universalidade dos direitos humanos. Chegámos a um ponto em que ninguém tem legitimidade para impor um qualquer sistema de valores a quem quer que seja. O mundo está coberto por um imenso telhado de vidro. Debaixo desse telhado, são cada vez menos as referências credíveis, os homens cujas acções e saber podem servir-nos de exemplo. E são meramente individuais. Quando se deixam enredar nas tramas gregárias do poder, acabam quase invariavelmente por se transformar em monstros clonados daqueles de quem foram vítimas. Daí que seja cada vez mais urgente questionarmos os fundamentos do estado. Cito:

A concentração de toda a força física nas mãos da autoridade central é a função primária do estado e é a sua característica decisiva. De maneira a tornar isto claro, considere-se o que não se pode fazer sob a forma de domínio do estado: ninguém na sociedade governada pelo estado pode tirar a vida de outrem, fazer-lhe mal fisicamente, tocar na sua propriedade ou prejudicar a sua reputação excepto com a permissão do estado. Os mandatários do estado têm poderes de tirar a vida, infligir castigos corporais, tirar propriedade como multa ou por expropriação, e afectar o estatuto ou reputação de um membro da sociedade.
Isto não equivale a afirmar que em sociedades sem estado se possa tirar a vida impunemente. Mas em tais sociedades (por exemplo, entre os bosquímanos, os esquimós, e as tribos da Austrália Central) a autoridade central que protege a família contra transgressores é inexistente, fraca, ou esporádica, e foi aplicada entre os Crow e outros índios das planícies ocidentais só à medida que surgiam situações. Nas sociedades sem estado, a família ou o indivíduo são protegidos por meios não explícitos, pela participação total do grupo na supressão do transgressor, pela aplicação temporária ou esporádica de uma força que deixa de ser necessária (e portanto deixa de ser usada) quando a causa da sua aplicação pertence ao passado. O estado dispõe de meios para suprimir o que a sociedade considera incorrecto ou criminoso: polícia, tribunais, prisões, instituições que funcionam explícita e especificamente nesta área de actividade. Além disso, estas instituições são estáveis no quadro de referência da sociedade, e permanentes.
Quando o estado se formou na antiga Rússia, o príncipe dominante afirmou o poder de impor multas e infligir a dor física e a morte, mas não permitia a qualquer outro que agisse assim. Afirmou mais uma vez a natureza monopolista do poder de estado excluindo do seu exercício qualquer outra pessoa ou organismo. Se um súbdito sofresse algum mal às mãos de outro sem a permissão expressa do príncipe, isto era uma transgressão e o transgressor era punido. Além disso, o poder do príncipe só podia ser delegado explicitamente. A classe dos súbditos desta forma protegidos era assim cuidadosamente definida, claro; de maneira nenhuma eram protegidos desta forma todos os que estavam dentro do seu domínio.
Nenhuma pessoa ou grupo se pode substituir ao estado; os actos do estado só podem ser realizados directamente ou por delegação expressa. O estado, ao delegar o seu poder, transforma o seu delegado em agente do estado. O poder coercivo dos polícias, juízes, guardas prisionais, deriva, segundo as regras da sociedade, directamente da autoridade central; bem como o dos cobradores de impostos, dos militares, guardas fronteiriços, e coisas semelhantes. A função autoritária do estado assenta no seu comando destas forças como seus agentes.

Lawrence Krader, in Formation of the State, citado por Robert Nozick, in Anarquia, Estado e Utopia, trad. Vitor Guerreiro, Edições 70, Novembro de 2009, pp. 154-155.

O que pensar quando o estado ou os seus agentes se transformam em agressores? O que pensar e, sobretudo, o que fazer para que não sejamos nós as próximas vítimas?

PASSADO

Tu não sabes o que é que eu ia fazer no passado. Se esperasses para ver o que eu ia fazer no passado não dizias isso.
Matilde

sexta-feira, 19 de março de 2010

E AGORA?


Restam-me 32,84€ e não sei o que fazer. Imagino os tormentos e as angústias que os Van Zeller deste mundo têm de suportar. Leio na imprensa que um tal de Penedos recebeu um prémio de 243,8 mil euros relativo ao seu profissionalíssimo desempenho e que um tal de Rui Pedro Soares, rapazito simpático, recebeu 1,5 milhões em 2009. O que fará esta gente com tanto dinheiro? Temo por eles. Se recebem estas quantias astronómicas é lógico que trabalhem imenso. Não devem ter tempo nem para desfrutar de um copo de Häagen-Dazs, quanto mais para pensar no que fazer ao dinheiro que conquistaram com o suor do seu trabalho. Restam-me 32,84€ e nenhuma ideia. Talvez o Van tenha razão, talvez me devessem baixar o salário. Livravam-me de horas, diria mesmo de dias inteiros, desesperadamente à procura de um motivo, de uma razão, de qualquer coisa que justifique gastar a fortuna que me resta. Já paguei as contas, estou vestido, comido, bebido. Que mais posso querer? Só não estou dormido, sem dúvida por ser tanto o dinheiro que me sobra e a cabeça não parar de se questionar sobre o privilégio que é poder ainda ter 32,84€ no bolso quando anda para aí tanta gente sem nada (ou com alguns milhões, o que, bem vistas as coisas, vai dar ao mesmo). Pensei que ir ao médico tratar da saúde talvez fosse uma boa opção. E fui. Deixei 40€ na clínica - para ser auscultado e vir-me embora com uma receita de Miflonide, Formoterol, Flutaide, Nasex, Stérimar, Aerius, Ben-U-Ron, Nimesulida, Acetilcisteína e Clavamox. Já aviei a receita na farmácia. Agora estou com saldo negativo. Começo a ficar ansioso, deprimido, ainda mais doente do que estava. Pode ser que a azia me tome conta da asma e das alergias. Deixaria de ir ao médico e poderia gastar os 32,84€ em sais de frutos. Ou numas minis para misturar com o Clavamox. Será que dá moca?

quinta-feira, 18 de março de 2010

PRIMEIRA ANTOLOGIA DE MICRO-FICÇÃO PORTUGUESA


Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa
Tradução para árabe de Said Benabdelouahed
Selecção e organização de Rui Costa e André Sebastião
Prefácio de Henrique Manuel Bento Fialho
Racines, Marrocos
2010

Prefácio, pp. 7-12. Os mesmos contos que aqui, pp. 47-56.

segunda-feira, 15 de março de 2010

SERRALVES, MARÇO, 2010

Isto não é um quadro pendurado numa parede. É uma parede de vidro, um vidro numa parede, o exterior pendurado numa parede através de uma janela gigantesca. Isto é uma obra de arte, a mais realista das obras de arte, é um pedaço de terra circundado de silêncio, é um pedaço de jardim delimitado pelas paredes, transfigurado através de um vidro transparente. Isto é aquilo que os nossos olhos vêem enquanto transitam no interior de uma obra de arte. Isto é potlatch, numa relação misticamente ateísta entre três espaços conexos: o da nossa intimidade/corpo, o do edifício que nos abriga a intimidade e o espaço exterior onde esse edifício foi erigido.


Isto podia ser uma sombra de Lourdes Castro, um trabalho de Manuel Zimbro, uma obra exposta numa galeria. Mas isto não é um quadro, nem uma fotografia, nem uma obra de arte pendurada numa parede. Isto é a cerimónia do artista que, acossado pela teoria, opta por ensaiar a abnegação com um gesto radical: a morte. Ainda me faltam alguns livros para chegar ao termo da cerimónia, ainda me faltam alguns passos, mais um ou dois banhos daquela luz que atravessa o vidro e me faz pensar que isto não é uma obra de arte pendurada numa parede. Isto é o corpo de um artista a dar-se ao meu corpo, é a paisagem que a parede tem para me oferecer enquanto lá fora o mundo se afunda.


Mas isto sim, isto é o que o olhar constrói quando se deixa destruir pela dádiva. Leonel Moura ironizando o corpo dentro de outro corpo, um edifício teórico, idealista, esse corpo que cresce nos livros e nos asfixia até à ausência de esperança. Nesse corpo, as extremidades são férreas. Nada mais se avista para lá desse corpo, nenhum jardim, nenhum mundo, as paredes tornam-se obscuras, o cérebro enreda-se numa plausível desistência. Não há o que pensar acerca desta relação. O artista dá-se, oferece-se ao seu público, dá-se na totalidade já não apenas enquanto artista, mas como homem. Suicida-se. Como Ruy Belo, matando-se na escrita, o artista mata-se na obra, oferece-se como recompensa à teoria que a sustentou. Aceito a tua dádiva, morte pendurada na parede, como quem nada tem para oferecer senão o testemunho de uma presença.

sábado, 13 de março de 2010

pullllllllllllllllllllllllll



«Esperamos que a vossa experiência de leitura possa ser tão desconcertante como foi a nossa tentativa de tradução – à falta de melhor palavra para uma prática poética que puxaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa a linguagem até ao limite» (p. 7). O desejo formulado por John Havelda, Isabel Patim e Manuel Portela, organizadores e tradutores de pullllllllllllllllllllllllll (Antígona, Fevereiro de 2010), pode servir de mote para algumas questões sempre associadas a um trabalho como é aquele que ora nos ocupa. Antes de mais, um exemplo inócuo e, provavelmente, irrelevante aos olhos de alguns leitores: o título da antologia é dinâmico. pullllllllllllllllllllllllll, uma espécie de neologismo, aparece grafado ora com 26 éles (no miolo), ora com 12 (na lombada), ora com 11 (na capa, se não tivermos em conta o saca-rolhas). O número é indiferente, mas não deixa de ser curiosa esta confrontação imediata com uma intenção subjacente a toda a poesia aqui reunida, ou seja, a de se jogar com a linguagem a ponto de tornar o significado e o sentido elementos secundários na concepção do poema. Importará mais a sugestão de uma ideia, de uma imagem, ou a exploração do ritmo e da musicalidade nas suas dimensões menos constrangidas, do que submeter a palavra a uma eventual mensagem cuja comunicabilidade é sempre discutível e radicalmente subjectiva. Isto, apesar das normas e das regras gramaticais, sintácticas, ortográficas.

Os autores coligidos podem não parecer preocupados com o que têm para dizer, pelo menos não tanto como parecem empenhados na experimentação do dizer ele mesmo – subvertendo as regras, minando a gramática, armadilhando as normas, jogando, espartilhando a morfologia da palavra. Isto não significa um radical esvaziamento de sentido, apenas e tão-só que o sentido advém de uma predisposição para a plasticidade e para a elasticidade do dizer. A poesia é colocada numa situação-limite que pode inspirar desconfiança ou, se pensarmos em práticas de leitura mais conservadores, pode resultar num desprezo que negará a própria existência de poesia, independentemente do que entendamos sobre tal conceito, nas práticas poéticas levadas a cabo por estes autores. São treze e nem todos canadianos de origem. Robin Blaser (1925-2009), por exemplo, nasceu em Denver, Colorado, e só em 1972 obteve cidadania canadiana. É também o mais velho dos antologiados e o único que, à data em que escrevo, já faleceu. A este se juntam Robert Kroetsch (1927), Fred Wah (1939), Roy Miki (1942), bpNichol (1944), Dennis Cooley (1944), Steve McCaffery (1947), nascido em Sheffield, Inglaterra, Dionne Brand (1953), emigrada para o Canadá em 1970, mas nascida em Guayguayare, Trinidad, Erín Moure (1955), Karen Mac Cormack (1956), nascida na Zâmbia, Jeff Derksen (1958), Lisa Robertson (1961) e Christian Bök (1966).

Cada qual com as suas idiossincrasias, ligam-se pela tendência para a experimentação poética e pela recusa da fossilização discursiva que caracteriza a poesia dita mais acessível ou, pelo menos, mais convencional. Mas ligam-se igualmente por outros aspectos não tão evidentes. Nota-se, por exemplo, uma certa inclinação para polvilhar a explosão poética com elementos oriundos de outras artes ou ciências: da zoologia à geologia, da geografia à economia, da política à história, etc. Erín Moure, a título de exemplo, enraíza a criação poética no trabalho de tradução, chamando ao palco vozes tão diversas como as de Alberto Caeiro, Jean-Luc Nancy, Judith Butler, Lévinas, Aristides Sousa Mendes, Clarice Lispector, entre outros. A intenção não deixa margem para dúvidas: «Desfazer o conceito do “eu” como observadora não autoconsciente no poema, como “voz poética”. Que se dane a voz poética» (p. 221). Daqui à produção do acaso, das composições de cariz mais visual a outras filiadas na chamada poesia sonora, é precisamente o eu lírico quem acaba mais maltratado. No entanto, a corrosão do lirismo não é um fim em si mesmo. Note-se como não deixando de ser algo líricos, os poemas de Dionne Brand armadilham esses resquícios de lirismo assumindo na sua vertente política uma interrogação dos limites da linguagem: «O que eu digo em qualquer língua é dito com perfeito / conhecimento da pele, em embriaguez e pranto, / dito como uma mulher sem fósforos e mecha, não em / palavras e em palavras e em palavras decoradas, / contadas em segredo e sem ser em segredo, e escuta, não / se extingue nem desaparece e é abundante e impiedoso e ama» (p. 53).

Palavras decoradas ou decorativas, certo é que encontramos nestes poemas uma constante interrogação do sentido. Talvez o poema (A) Diferença Faz-se, de Fred Wah, seja, pelo que foi afirmado, o mais representativo da antologia: «Dizer: “Não percebo o que isto significa” é, pelo menos, reconhecer que / “isto” significa. O problema é que o sentido não é uma totalidade de / igualdade e previsibilidade» (p. 277). A problematização do poético e a sua aparente imprevisibilidade acaba por ser o que de mais resistente encontro nestas práticas poéticas, pelo que sou levado a concluir ser esta apenas mais uma das diversas formas do fazer poético que redundará sempre numa vontade de conhecer o mundo para lá da sua aparente cognoscibilidade. A questão é que talvez a palavra não tenha mesmo nada a dizer. Antes de terminar, alguns aspectos de organização que importa sublinhar, até pela relevância que assumem numa obra deste tipo: a edição é bilingue, permitindo um acesso directo aos textos originais e uma confrontação com as versões portuguesas que, diga-se em abono da verdade, são, pela dificuldade das propostas, geralmente meritórias; cada autor tem direito a notas biobibliográficas com todas as referências necessárias para um melhor enquadramento dos trabalhos seleccionados, assim como menção a sítios na Web que poderão abrir portas sobre as obras em causa; acrescentam-se ainda breves citações de cada um dos autores, esclarecedoras do entendimento que cada um construiu sobre as suas próprias produções. Um mimo, portanto, para os adeptos da poesia experimental.

Escrito para o Rascunho.

sexta-feira, 12 de março de 2010

LE TEMPS QU'IL RESTE



Último eco do FantasPorto 2010: The Time That Remains, de Elia Suleiman. A história de uma família de palestinianos desde a fundação de Israel até à actualidade. Suleiman diz que se inspirou nos diários deixados pelo pai, malogrado combatente da resistência árabe, e nas cartas que a mãe escrevia para familiares forçados a abandonar a região depois de os judeus terem tomado o poder por aquelas bandas. O retrato de Suleiman é de um humor com inclinações negras que tem dois méritos: arrancar sorrisos irónicos à assistência e provocar aqueles que eventualmente possam esperar uma encenação trágica dos acontecimentos históricos. Tal como já acontecia em Divine Intervention (2002), o enfoque é colocado na dimensão absurda das variadíssimas situações. Numa cena, Suleiman chega a saltar à vara o muro que separa Israel da Palestina. Sempre de ombros descaídos e com um rosto desapaixonado, a lembrar a ausência de sorriso que ficou para a história como uma das principais marcas de Buster Keaton, o realizador/actor aparece nos momentos finais do filme para representar um reencontro com as origens. A pergunta que paira no ar é: onde estou? O sentimento de deslocação é evidente, as personagens parecem perdidas, não como corpos à deriva, mas antes como elementos desagregados do espaço agora estranho onde detêm as suas raízes. Desenraizamento e desorientação são, quiçá, as razões que explicam os comportamentos abismados e pasmados, quase sem reacção, daqueles que se vêem impossibilitados de regressar aos lugares de onde partiram. Há em cada uma das cenas um esforço coreográfico que faz deste filme uma espécie de musical sem banda sonora, à qual não será alheia a técnica mímica. Para territórios devastados, os cenários são paradoxalmente límpidos, quase impolutos. E é admirável a forma como os diálogos são filmados, nomeadamente no contexto familiar, não sendo necessárias muitas palavras para afirmar o que os movimentos de câmara, os diferentes planos, os esgares, já asseguram por si. Entre cenas de maior ou menor intensidade dramática, uma personagem sintetiza melhor que todas as outras a natureza tragicómica do argumento: um velho palestiniano que não aguenta viver sob o jugo israelita, embebeda-se sucessivamente e tenta suicidar-se regando o corpo com querosene; vai sendo salvo por um vizinho, o pai de Elia, que no dia seguinte escuta ao velho novas e extravagantes estratégias para derrubar o inimigo invasor. Todas elas incluem um mesmo elemento: beber muito álcool. Há lá melhor forma de combater os inimigos?

quinta-feira, 11 de março de 2010

DIÁLOGOS SOBRE ESTÉTICA

O pai naturalista: As Winx não existem.
A filha romântica: Existem, existem.
O pai naturalista: Se existem, onde é que elas estão?
A filha romântica: No canal Panda.

UMA SESTA

Hoje dormi uma sesta gorda.
Beatriz, 3 anos.

O CINEMA ENQUANTO REMAKE



O vídeo acima é do mesmo autor de La Carte, a Melhor Curta-Metragem do FantasPorto deste ano. O estilo é o mesmo, pelo que sou levado a crer que Stefan le Lay gosta de desorganizar histórias de amor recorrendo a artifícios técnicos transformadores da realidade. Em La Carte, as figuras de postais expostos num quiosque de praia ganham vida própria. Uma delas, apaixona-se por uma outra que está num expositor ao lado. O resto resulta de um primoroso exercício técnico que mete as figuras dos postais a saltarem de expositor para expositor, une realidades multicoloridas a paisagens a preto e branco, mistura elementos visuais distantes no tempo mas próximos na temática ilustrada. Tudo muito ligeiro, fascinante, alegre, mas também incitador de um questionamento a que o domínio cinematográfico nos obriga permanentemente, isto é, a transfiguração da realidade enquanto produto de uma imaginação cuja função é o de ir alargando os limites dessa mesma realidade. Se admitimos que no campo da imaginação tudo é possível, não podemos negar que essa infinitude de possibilidades se processa sobre o terreno aparentemente mais limitado do real. Mera aparência, pois o real não é senão o corpo vivo e mutável onde a imaginação vai imprimindo as suas novas aventuras. Os desenvolvimentos constantes da técnica aí estão para o provar.

De uma mão cheia de curtas que vi lá pelo norte, quero ainda sublinhar, até pela relação improvável que mantém com as afirmações anteriores, um trabalho assinado por Artur Serra Araújo. Desavergonhadamente Real é uma curta de meios ínfimos que prova não serem necessários grandes recursos para se fazer bom cinema. Durante uma sessão de filmagens, dois actores acabam por não resistir ao envolvimento e o que deveria ser mera representação de papéis acaba por se confundir com um relacionamento objectivo. As fronteiras que separam a realidade da ficção são transpostas, deixando o espectador na dúvida entre o que possa ser trabalho ou lazer na cena de sexo que está a ser filmada. Mas ainda que a intenção do realizador seja responder a algumas dúvidas entre as relações sempre dúbias entre os domínios da realidade e da ficção, o que fica no ar é uma estranha perplexidade: afinal, não andaremos nós a representar constantemente um papel sem guião nem realizador determinados? Aqueles que nos julgam cumprem o papel do realizador, mas também eles são personagens de uma trama sem fim. Nas suas mãos, nós somos apenas o que resulta de um olhar mais ou menos inteligente no contexto da hermenêutica que pretenda levar a cabo. Curioso paradoxo, este de vivermos sob máscaras que pretendemos serem rostos que nem nós próprios, por vezes, conseguimos vislumbrar com clareza num qualquer espelho revelador de identidades em incessante construção.

QUANDO ESCREVE DESCALÇA-SE À ENTRADA DO POEMA


Braga, 11 de Março de 1940, Rua de São Geraldo, freguesia da Cividade. Nasce Dinis Albano Carneiro Gonçalves, filho de um professor primário e de uma doméstica. O pequeno Dinis frequentará a escola primária em Torre de Dona Chama, aos cuidados da avó paterna e de um tio-avô que era padre. Em 1949, a família partiu para Moçambique, passando a residir em Tete. Dinis Gonçalves prosseguirá os estudos no Colégio Camões e no Instituto Liceal na Beira, dirigido por padres maristas. Este convívio recorrente com gente ligada à igreja não é de descurar, mais ainda se tivermos em conta que o seu pai era um homem com formação teológica. Nos finais dos anos 50, a família mudou-se para Quelimane. Foi por estas terras que Dinis Albano Carneiro Gonçalves começou a transformar-se em Sebastião Alba, um poeta de corpo inteiro. Com 21 anos, a tropa trocou-lhe as voltas. Arregimentado no Contingente Geral, em Boane, a cerca de 20 Km de Lourenço Marques, desertou ao segundo dia, acabando por ser detido e acusado de «extravio de objectos militares». Os objectos eram um cinto e o bivaque. Enquanto aguardou julgamento na prisão, ainda se ausentou quatro vezes. Foi condenado a 15 meses de pena, cumpridos na 23ª Enfermaria do Hospital Miguel Bombarda. A consciência política tornava-se mais aguda, pelo que não é de estranhar o surgimento do primeiro livro de poemas (por vezes, há entre ambas as realidades uma estranha relação de causa e efeito). Poesias foi publicado em 1965, patrocinado por um jornalista amigo do pai de Sebastião Alba. Dele, pouco resistirá. Daqui em diante, o poeta sobreviveu como jornalista e angariador de publicidade. Em 1966, conheceu Felisbela do Livramento Silva. Casaram-se três anos depois e tiveram duas filhas. Entretanto, Sebastião Alba foi travando conhecimento com vários escritores e colaborou com a revista Caliban, dirigida por João Pedro Grabato Dias e Rui Knopfli. 1974 será um ano determinante: morre-lhe, vítima de acidente de viação, o irmão, também jornalista e escritor, António Carneiro Gonçalves, e publica O Ritmo do Presságio, com apresentação de José Craveirinha:

Quando nascemos entramos
no nome pela voz dos pais:
─ Dinis Albano…
Íntima e sonora identidade.
Chamam-me e volto
a cabeça, dissuadido.
Na voz duma mulher
os nomes são
interiores a nós.
(Na dum polícia, desprendem-se,
como se apenas
os envergássemos).
Um amigo dirige-se-nos,
e as letras do nome
─ tu?! ─ correm de doçura.
Um dia, o nome,
por capricho duma veia ou dum fonema,
ocultamente, esvai-nos.
E por detrás dele,
alheados dos ritos,
nem sabemos da sua
cessação.

Após a independência de Moçambique, o apoio à FRELIMO valeu-lhe um convite para frequentar um curso de formação em Inhanbane e a nomeação para Administrador da Província da Zambézia, cargo que abandonou passados alguns meses. Leccionou Economia Política e fixou-se, com a família, em Maputo, contactando aí com a nata intelectual de Moçambique. Um dos comparsas era o poeta Luís Carlos Patraquim, com quem terá levado a cabo algumas actividades contestatárias. Em 1982, Sebastião Alba publicou, pelas Edições 70, o livro A Noite Dividida:

Gosto dos amigos
que modelam a vida
sem interferir muito;
os que apenas circulam
no hálito da fala
e apõem, de leve,
um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
entre quem são
e quem eles me parecem,
o meu agrado inclina-se
para o mais reconciliado,
ao acordar
com a sua última fraqueza;
o que menos se preside à vida
e, à nossa, preside
deixando que o consuma
o núcleo incandescente
dum silêncio votivo
de que um fumo de incenso
nos liberta.

Pouco depois, abandonou Moçambique e regressou a Braga com a mulher e as filhas. Mais tarde, estas serão confiadas à avó materna e passarão a viver em Miratejo. Sebastião Alba continuou a publicar alguns poemas, nomeadamente na revista Colóquio/Letras. Em Braga, assumiu uma vida solitária, de andarilho, desempenhando por períodos breves algumas actividades. O vício do álcool foi-se agravando. Tentou várias curas de desintoxicação. Em 1993, o divórcio e visitas esporádicas às filhas. Morre-lhe a mãe. Michel Laban entrevista o poeta e publica o texto no volume Moçambique ─ Encontros com Escritores. Alguns amigos subscreveram um pedido de subsídio de mérito cultural, que acabou por lhe ser atribuído pelo Ministério da Cultura. Ainda assim, a rua era a nova casa de Sebastião Alba. Herberto Helder sugeriu à Assírio & Alvim a publicação da obra reunida do poeta, o que veio a acontecer em 1996:

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame…
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.

Por essa altura, Sebastião Alba era o caso da poesia portuguesa (sempre ávida e pródiga de/em casos). Em 1997, ganhou o Grande prémio de Poesia ─ Imobiliária Teixeira & Filhos. Fez-se representar por uma das filhas e prescindiu do dinheiro a favor dos herdeiros. Alguns poemas seus foram traduzidos para alemão, recusou vários convites para iniciativas culturais, a saúde foi-se degradando. A 14 de Outubro de 2000, termina os seus dias como vítima fatal de atropelamento e fuga. O corpo permaneceu por identificar durante três dias. A 7 de Outubro, escrevia a Vergílio Alberto Vieira: «Se um dia encontrarem morto "o teu irmão Dinis", o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá».



Fonte: Uma Pedra ao Lado da Evidência, selecção e apresentação de Vergílio Alberto Vieira, Campo das Letras, Novembro de 2000. Infelizmente não consegui apurar a autoria da imagem. As minhas desculpas.

quarta-feira, 10 de março de 2010

SÃO AS FORMIGAS



Dórdio Guimarães nasceu no Porto a 10 de Março de 1938. Filho do cineasta Manuel Guimarães, colaborou, desde cedo, nos filmes do pai, primeiro como actor e depois como assistente de realização. O próprio acabou por realizar alguns filmes sobre escritores portugueses e assinou programas de televisão, entre os quais Mátria, apresentado por Natália Correia. Foi jornalista durante vários anos, exercendo a profissão na imprensa escrita, na rádio e na televisão. Como poeta, estreou-se em 1960 com Tempo imediato. Em 1962, co-organizou, com Mário Dias Ramos, uma colectânea de novos autores intitulada Poesia e Tempo. Nesse mesmo ano, conheceu Natália Correia, com quem manterá uma forte amizade reforçada com o casamento em 1990. A vida de Dórdio Guimarães confunde-se com a de Natália Correia, ou «Cynthia», como a apelidava e como a cantou nos livros Cynthia (1964) e Cynthia livro segundo (1968): «Eu toupeira das horas tu amazona / amiga de dormidas árvores». É autor de uma obra que se estende pela poesia e pela narrativa. Em 1967, publicou a novela O Homem das Batalhas e, em 1972, o romance Alexandre Nevski. Colaborou com o projecto musical Fluido, liderado por Paulo de Carvalho, vendo alguns dos seus poemas ousadamente musicados. Dedicou os últimos anos da sua vida à memória de Natália Correia, nomeadamente tentando criar uma Fundação Cultural com o seu nome. Faleceu em Lisboa, a 2 de Julho de 1997. Não coube na antologia:

SÃO OS ELEFANTES...

Na alvorada mais límpida do mais denso sossego
marchando leves e bisonhos para a morte
são os elefantes

quero morrer com essa convicção e essa nitidez
um bailado de astros acordados à mesma hora
jovens sentados na terra tocando suas violas
com seus cantos misturados com os pássaros
e peixes estremunhados por ondas e marés vivas
um dia de cristal abrindo pupilas de alegria
são os elefantes

são os elefantes marchando de manhã para o cemitério
e dançam os corpos de vinte anos com as plantas
e dançam com as pedras com as árvores com as flores
e danço eu que vou morrer ao ar enfim livre
e certamente é a paz que faz mover os paquidermes
e os impele adentro o dia discretos como uma carícia
e os jovens vibram sua voz com a decisão dum canto
de trunfo de anúncio de triunfo
são os elefantes

que só fale a natureza a palavra sem perigo
marcham lentamente bondosos de silêncio e morte
quero morrer feliz e claro vivam os jovens amanhã
são os elefantes

são os elefantes

são os elefantes




Nota: A fotografia foi surripiada ali.

WARD N.º6



Ward nº 6, do russo Karen Shakhnazarov, baseia-se num conto de Anton Tchekov ─ motivo mais que suficiente para aguçar a curiosidade. Ainda por cima, é um excelente filme. Levou para casa o Prémio Especial do Júri do Fantasporto 2010, ao qual se deverá acrescentar a minha absoluta rendição. O cenário é um antigo mosteiro transformado, ao longo dos tempos, em asilo de loucos. Filmado num registo que alterna o documental com a pura ficção, Ward nº 6 começa precisamente por nos introduzir nesse processo de transformação do edifício. No entanto, a história que tem para nos contar é sobre o processo de transformação de um homem que trabalha dentro desse edifício: o doutor Ragin, director do hospício. Um homem inteligente, especulativo, com inclinações filosóficas, aberto a questões metafísicas, mas profundamente só. Isolado, sem ter com quem partilhar os seus interesses, enclausurado numa cidade amorfa repleta de gente desinteressante, óbvia, mesquinha, previsível e superficial, o doutor Ragin encontra num dos seus pacientes o parceiro de conversa ideal. Muito discutem, nomeadamente os fundamentos para a situação em que ambos se encontram. O que é a loucura? Com que direito alguns homens encarceram outros homens? Quem determina a insanidade de um ser? Porque não é a sociedade que se movimenta para lá das paredes daquele asilo, na sua artificial normalidade, mais demente do que os alienados ali enclausurados? Embrenhado num manto de dúvidas, o doutor Ragin entrega-se ao álcool, deixa-se tomar pela depressão, torna-se ele próprio uma ameaça ao pilar que fundamenta a convencional separação entre loucura e normalidade. Não é preciso ter lido Arno Gruen para perceber que o meio social é um vasto e legitimado hospício onde emergem, por variadíssimas razões e em diversificados contextos, pequenos vírus que os homens ditos normais tendem a considerar loucos. Em certas circunstâncias, os loucos são tomados por gente normal. Deixam de o ser quando ameaçam os muros da maioria, quando se tornam, eles próprios, uma ameaça, quando agridem e violentam as regras, as leis, as noções de dever e os direitos que servem de base à organização social, como uma superfície de areia muito fina que ao mais leve movimento pode ser desorganizada. Afinal, a normalidade é uma questão estatística. O doutor Ragin acabará por ser visto, aos olhos de um jovem e ambicioso doutor, como um desses elementos que pode pisar o risco, ou seja, a fina areia, deixando num estado caótico o que se pretende ordenado. A questão que somos levados a formular, já sobre a mudez de um homem outrora loquaz, é esta: o que nos leva à loucura? Recordo-me de um poema meu que começa assim: as pessoas saudáveis são todas desinteressantes. A retórica do argumento não pretende outra coisa senão chamar a atenção para os vícios da higienização, algo que, se quiserem, pode ser interpretado paralelamente aos perigos da normalização. Estes processos tendem a impedir a afirmação livre do ser, ofuscam-no, recalcam-no, adestram-no, porque temem a sua inconveniência. Pretendem integrar, desintegrando. Pouco mais podem sustentar do que um inconformismo conformado. O resto será interpretado como desvio. E para o desvio só resta uma solução: endireitar. Nada há mais impertinente numa sociedade que se pretende calafetada do que as pulsões do ser. Por isso foram os homens impelidos a conter o riso, por isso foram educados para o desprezo do corpo, por isso foram domesticados na sua natural bestialidade, crueldade, anarquia, por isso foram os homens chamados a odiar os amantes incondicionais, por isso foram reprimidos sempre que foram homens, ou seja, sempre que questionaram os métodos através dos quais se proíbe alguém de ser ele próprio. O inquestionável não existe. O silêncio fechado do doutor Ragin resulta da mais execrável violência que pode ser exercida sobre alguém cuja natureza é, precisamente, questionar. Neste caso, pode ser interpretado como uma violentação tirânica do ser. Não é outro o papel das sociedades higienizadas, tiranizar o ser a ponto de o reduzir a uma insustentável solidão. Agora pense o leitor no Portugal contemporâneo, assaltado recorrentemente por exemplos, ainda que mais ou menos residuais, de um puritanismo medievalesco. Depois de pensar, se se sentir só, pense duas vezes antes de ir ao médico.

terça-feira, 9 de março de 2010

FISH TANK



Nasci numa localidade atravessada por um rio. Desde muito cedo, habituei-me a dar utilidade às canas. Ia com alguns amigos para um açude, roubávamos maçãs pelo caminho, fumávamos barba de milho, pescávamos peixes que depois voltávamos a lançar à água. Um dia, lembrei-me de ficar com um desses peixes. Guardei-o dentro de um saco de plástico cheio e levei-o para casa, colocando-o depois dentro de um aquário improvisado. Um frasco de Toddy, se bem me lembro. O peixe passava o tempo todo a saltar para fora do frasco. Um dia não fui a tempo de voltar a colocá-lo dentro de água e o peixe morreu. Afogado de ar, suponho. Fish Tank, o filme de Andrea Arnold que ganhou este ano o Prémio da Semana dos Realizadores/Prémio Manoel Oliveira, acumulando com o Prémio para Melhor Argumento, oferece-nos uma personagem semelhante àquele peixe da minha infância. Começa com essa personagem ofegante, uma jovem adolescente que diremos problemática só para simplificar a caracterização. Fechada numa sala de um prédio abandonado dos subúrbios, ensaia passos de dança. Porém, o destino da jovem Mia não será tão óbvio quanto o do meu peixe. É numa intencional frustração das expectativas em momentos de contenção que o filme de Andrea Arnold ganha todo o interesse. Por diversas ocasiões, a mais óbvia morbidez do espectador é levada a esperar o pior. Mas o pior fica sempre por acontecer. Numa cena, desconfiamos que a jovem protagonista do filme acabará violada. Nada acontece. Noutra, supomos que ela irá matar, ainda que acidentalmente, a filha de um impostor que lhe andava a comer a mãe. Nada acontece. Noutra cena, é-nos sugerido que ela será agredida raivosamente por esse aldrabão. Fica-se a brutal violência por uma chapada nas trombas. Uma chapada do mesmo género que a realizadora nos dá nestas e noutras variadíssimas ocasiões. A frustração das expectativas é uma constante no argumento e na relação mantida entre o espectador e a narrativa visual a que este está sujeito. Se os filmes fossem sobre alguma coisa, podíamos dizer que este é um filme sobre a vida nos subúrbios... mas não estaríamos a ser precisos. Também não se trata de pretender fugir ao óbvio resvalando numa gratuitidade reflexiva que poderia fazer deste mais um filme sobre a entrada na vida adulta. À jovem Mia já foi usurpada a adolescência. Uma mãe disfuncional obrigou-a a crescer raivosamente. Há pelo meio uma mula que talvez possa servir de metáfora para tudo o que ali se passa. A mula está presa num acampamento de ciganos. Mia tenta, por diversas ocasiões, libertá-la. Não consegue. Ela e a mula têm praticamente a mesma idade. Estão ambas aprisionadas. Porque se encontrava doente, a mula terá de ser abatida. O mesmo terá de fazer Mia. Abater-se, deixar para trás o passado, libertar-se, já que em seu redor não existe quem a queira libertar. Enfim, a ser sobre alguma coisa, este filme é sobre a capacidade de resistir às adversidades e tomar a vida nas próprias mãos. Uma última palavra para Michael Fassbender, um grande actor que já me tinha surpreendido em Hunger e Eden Lake. Teve também uma participação mais discreta em Inglourious Basterds.

segunda-feira, 8 de março de 2010

HEARTLESS



MEFISTÓFELES. Mui bom proveito
Vos faça o banho quente, que é mer’cido!
Johann W. Goethe, in Fausto


Tenho um sentimento ambivalente do mundo. Se por um lado consigo deleitar-me com as maravilhas que ele nos oferece, por outro lado deprimo-me amiúde com os horrores que ensombram essas mesmas maravilhas. Seria superficial considerar-me optimista ou pessimista, mas ainda mais banal dizer-me realista. Entalado entre dois pólos, julgo que a maleita que melhor condiz com o meu temperamento é uma qualquer forma de distúrbio bipolar que ainda não tomou definitivamente conta de mim por razões tão simples de serem explicadas como encontrar uma agulha num palheiro. Porque não tenho palheiro e as agulhas estão todas devidamente arrumadas no seu lugar, concentro-me num mapeamento do mundo que os leitores poderão julgar em função de critérios subjectivos e, por isso mesmo, discutíveis. Mas o que a paisagem tem para me oferecer é um mundo profundamente desigual, assimétrico, injusto, não sei se melhor ou pior que no passado, até porque essa percepção agudizaria ainda mais a subjectividade do diagnóstico, portanto um mundo incoerente, absurdo a ponto de nele observarmos territórios riquíssimos em termos de recursos naturais, mas paupérrimos em termos de qualidade de vida, como se a riqueza natural fosse incompatível com a felicidade dos homens, pois neste mesmo mundo aqueles que a natureza terá, aparentemente, menos beneficiado são, estranhamente, os que denotam vidas mais opulentas. Norte e sul. Podemos ir diminuindo o campo de visão, diminuí-lo a ponto de pouco mais restar para ver do que aquilo que se passa à nossa volta. Um bairro servirá de barómetro e tudo se revelará incompreensivelmente semelhante. Um bairro é um mundo. Sucede que num bairro o mundo aproxima-se-nos, deixamos de necessitar de intermediários para pintarmos a tela, as notícias que nos dão conta da extrema violência longínqua abeiram-se à ponta do nariz, o corpo treme com um medo incomparavelmente alienador, a doença ameaça tomar-nos conta da carne e a descida aos infernos transforma-se numa realidade que psicólogos e psiquiatras empenhados na catalogação dos males poderão enquadrar à medida das suas próprias aflições. Uma criança suicida-se porque é objecto de violência continuada. Homens e mulheres suicidam-se nos seus locais de trabalho porque são objecto de outras formas de violência continuada. Há quem não aguente a pressão, nem arrumado num escafandro sobrevivem esses cuja sensibilidade desce aos infernos a ponto de entrar em colapso. O diabo e seus demónios passam a ser metáfora apenas para quem assiste à descompensação, mas transformam-se numa indubitável e insustentável realidade, um terror que se apodera do corpo, um medo que domina e tudo torna possível. Até pactos com o diabo. Vem isto a propósito de Heartless, o filme de Phillip Ridley que arrecadou o Grande Prémio do Fantasporto deste ano, assim como prémios para melhor realização e melhor actor. Jim Sturgess interpreta um jovem que desce aos infernos para pactuar com Mefistófeles, numa versão pós-moderna de Fausto onde o velho estudioso é um jovem atormentado por um rosto manchado à nascença. O pacto metamorfosear-lhe-á o rosto, mas também o transformará num agressor, ou seja, em mais um desses demónios que contribuem para uma realidade negra, uma realidade onde já nem pela ambivalência o coração logra resistir, pois nesta realidade o inferno é mesmo o mundo do qual fazemos parte. De certa forma, podemos pensar que a personagem central do filme acaba por se entregar à morte. Vê-lo a ser consumido pelas chamas recoloca-nos no tal plano de ambivalência onde iniciámos a viagem. É que ver alguém a libertar-se do inferno, mesmo que abdicando da vida, não pode senão sugerir-nos algum consolo. Quanto ao filme, é assim-assim.

sexta-feira, 5 de março de 2010

POLEMISTA E POETA

A biografia de Pasolini é um manancial de processos, interrogatórios, denúncias, depoimentos, audiências, condenações, recursos, detenções, notificações, sentenças, transgressões, difamações, agressões, distúrbios, queixas, assaltos à mão armada… Foi acusado de tudo, condenado por actos obscenos, detido por embriaguez, condenado por transgressão rodoviária, por porte abusivo de pistola, acusado de corrupção de menores, de ultraje aos bons costumes, etc., etc., etc.. Apreenderam-lhe romances, filmes, agrediram-no, violentaram-no, mataram-no. Nasceu este demónio a 5 de Março de 1922, em Bolonha, filho de um militar e de uma professora. Por imperativo familiar, peregrina entre a cidade natal e Parma, Belluno, Conegliano… «A minha infância foi uma longa série de mudanças...» Em 1935, tem um irmão: Guido Alberto Pasolini, que acabará executado por um corpo de jugoslavos dissidentes. Pier Paolo faz a escola primária em Sacile, escreve poemas dedicados à mãe, alimenta um ódio visceral pelo pai, que olha para o filho como um pequeno génio em formação. «Antes, até aos quatro ou cinco anos, desenhava muito. Aos sete anos, na segunda classe, escrevia pequenos poemas sobre a natureza, as árvores, as flores, as aves; exprimia ingenuamente o meu afecto pela minha mãe. Por outro lado, foi precisamente a minha mãe que, ao escrever uma poesia que me dedicou, me revelou a possibilidade de escrever poesias». A aposta da família na educação de Pier Paolo Pasolini é clara. Apesar da itinerância, o jovem consegue completar os estudos secundários no liceu Galvani e licenciar-se em letras na Universidade de Bolonha. Em 1942, o pai é feito prisioneiro no Quénia, o resto da família refugia-se em Casarsa, Pasolini pulica, em edição de autor, o seu primeiro livro de poemas em dialecto friulano: Poesias a Casarsa. Tinha 20 anos. «Escrevia estes primeiros poemas friulanos em plena voga do hermetismo cujo mestre era Ungaretti. À margem de um certo simbolismo provincial, Montale empenhava-se em prolongar poetas como Eliot e Pound; em suma, todos os poetas herméticos viviam da ideia de que a linguagem da poesia era uma língua absoluta. (...) Com muita ingenuidade, decidi ser incompreensível e, para tal, escolhi o dialecto friulano. Era, para mim, o cúmulo do hermetismo, da obscuridade, da recusa de comunicação. Ora, aconteceu uma coisa pela qual não esperava. O uso deste dialecto proporcionou-me o gosto da vida e do realismo». Enquanto cumpria serviço militar em Livorno, o regime caiu e o poeta regressou a Casarsa. 1945 foi o ano da morte do irmão, membro da brigada Osoppe. Pasolini lecciona, funda a Academia de língua friulana, adere ao Partido Comunista Italiano, empenha-se politicamente em várias lutas, lê Gramsci, Marx. Por esta altura, escreveu os poemas que darão corpo a L’usignolo della Chiesa cattolica (1958). Mas em 1948, um padre de Casarsa convenceu a família de um jovem a apresentar queixa contra Pasolini. Este acabou condenado por desvio do menor. Na sequência, foi perseguido, envolveu-se em vários escândalos, abandonou o PCI e Casarsa. Roma será a próxima estação. Dois anos de desemprego quase o levaram ao suicídio. Disfarçava a miséria com os jovens subproletários dos «borgata». Conseguiu um lugar como professor em Ciampino, travou conhecimento com o escritor Giorgio Bassani e chegou ao mundo do cinema como argumentista. Estabeleceu-se, com a família, em Monteverde e continuou a publicar os seus poemas. Criou um jornal poético, Dal diario, colaborou com a revista Officina, editou o romance Ragazzi di vita, sobre as suas experiências com os tais jovens subproletários. O escândalo estava mais uma vez instalado, assim como a celebridade. O reconhecimento dos pares e a fama que chegou com o romance e se prolongou com o cinema só aguçaram o apetite das hienas: sucedem-se perseguições, processos por obscenidade, denúncias várias. Pasolini aproximou-se dos cristãos progressistas, aprofundou os seus conhecimentos sobre antigas civilizações, escreveu vários ensaios, proferiu conferências sempre rodeadas de enorme polémica. «Sem ter deixado de habitar Roma, posso dizer que vivi fora da cidade. Progressivamente, este apego transformou-se em ideologia e acabei por viajar frequentemente e por amar os países do Terceiro Mundo, com um amor rural irredutível. Viajei pela Índia, pelos países africanos, árabes... Por Marrocos, pela Síria, pela Turquia, etc..» A sua relevância nos meios culturais era cada vez mais notada. Com ela, os escândalos políticos, as contradições, as tentativas de conciliação, a luta e a necessidade de intervir, manchadas sucessivamente pelo desregramento emocional. «Luta contra todos os conformismos e todos os preconceitos, quer sejam de direita ou de esquerda. Redefine o fascismo e o anti-fascismo à luz da nova evolução social (a sociedade de consumo)». Ateu confesso, não deixava de negar uma forte inclinação para um certo misticismo. «Embora a minha visão do mundo seja religiosa, não acredito na divindade de Cristo». A colaboração com o Il Corriere della sera reaproximou-o do PCI, mas sempre com a desconfiança das alas conformistas. «De resto, escrevi no poema Una disperata vitalità que sou comunista porque sou conservador». A 2 de Novembro de 1975, Pier Paolo Pasolini apareceu morto numa praia de Óstia. Assassinato. A obra de Pasolini continuou a fazer o seu caminho: em Janeiro de 1976, Saló foi apreendido e o produtor Grimaldi acusado de comercializar publicações obscenas. Debaixo da terra, o cadáver defende-se: «Muitos nunca me perdoaram escrever entre eles, sem estar enfeudado a nenhum poder nem constrangido pela Lei da sobrevivência. O meu verdadeiro pecado, foi ter exercido o ofício de jornalista como polemista e poeta, na mais total insubordinação. Esta insubordinação, transferiram-na para o plano moral, e a homossexualidade tornou-se, por esta operação de transferência, o próprio princípio do mal».

Fonte: As Últimas Palavras de um Ímpio (conversas com Jean Duflot), trad. Isabel St. Aubyn, Distri Editora, 1985.